“Ser e não ser”- essa sim é a questão
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"Ser e não ser"- essa sim é a questão

17 de março de 2018

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Para a Jornada Teológica de 2004 do setor nordestino da Fraternidade Teológica Latino-americana, escrevi uma carta de boas-vindas, na qual dizia:

A FTL é uma expressão mestiça e morena do cristianismo global. Por isso se afirma latino-americana e evangélica. Muitos gostariam de uma identidade mais clara para isso que se chama evangélico. Nada mais difícil, pois nessa terra o que vale não é a clareza, mas a mestiçagem. O mesmo pode-se dizer de nossa “nordestinidade”. Existem armadilhas escondidas por trás desse discurso de identidade que precisamos evitar. No iluminismo, o conceito de identidade se pregou ao princípio do terceiro excluído, mediante o qual nada pode ser e não ser ao mesmo tempo. Shakespeare, em 1600, colocou na boca do príncipe Hamlet o dilema da Modernidade que se iniciava: “Ser ou não ser, eis a questão”. O físico alemão fundador da física quântica, Werner Heisenberg, responderia ao jovem Hamlet: “Ser ou não ser, meu caro, não é a questão. A questão é ser e não ser” (material inédito).

Junto comigo nessas jornadas, além de muitas amigas e amigos preciosos, estava o Marcos Monteiro, um dos escritores que eu mais admiro, e que tem tido a bondade de ler esses artigos no Saiba Mais! Ele me mostrou este trecho de Água Viva, de Clarice Lispector:

- Eu não disse? Eu não disse que um dia ia me acontecer uma coisa? Pois aconteceu agora mesmo. Um homem chamado João falou comigo pelo telefone. Ele se criou no profundo da Amazônia. E diz que lá corre a lenda de uma planta que fala. Chama-se tajá (Água Viva – 1973).

Taí algo que eu não sabia de João: que ele tinha vindo do “profundo da Amazônia”. Afinal, “um homem chamado João” só existe um. Especialmente esse tipo de João que basta um telefonema para “acontecer uma coisa”. Muito obrigado, Marcos, por mais esse capítulo da vida de João que eu não conhecia.

Mas aquela última conversa que eu compartilhei me deixou um pouco chateado. É que eu transcrevi algumas coisas demasiadamente com minhas palavras, e acho que não fui bem fiel a ele. Sei que ele não fica chateado, pois sabe bem que não conseguirei jamais dizer as coisas que diz exatamente como são ditas, pois não se trata só de fidelidade às palavras, mas tem toda uma forma de dizer que é impossível transmitir.

Nossa conversa, como se lembram, terminou naquele ponto em que João deixava registrado seu incômodo com o furor classificatório dos cientistas sociais. Deixo bem claro agora, que essas são as minhas palavras. O trecho que transcrevi acima de 2004 mostra há quanto tempo esse mal-estar também me acompanha.

Disse certa vez, o psicanalista Jacques-Alain Miller: “as classes não existem na natureza” . Então, onde elas estão? Na cabeça de quem classifica, ou melhor dizendo, na cabeça coletiva das classificações produzidas. Em nome dessas classificações, quantas mortes, genocídios, e destruições psicológicas… Tudo por causa da maldita questão: “Ser OU não ser?”. João tem razão de estar incomodado com as classificações a que é vítima: ele é um homem religioso, cristão, protestante, pentecostal, de uma igreja do tipo neo-pentecostal. Só que ele não aceita a teologia da prosperidade, detesta a comercialização da fé, nunca falou em línguas, não sei se recitaria todo o credo apostólico (marca identificadora dos “verdadeiros” cristãos), e tem sérios problemas com a religião como instituição. Entretanto, já está classificado, e não se discute.

Não falei nada disso com ele, mas se tivesse falado acho que daria umas risadas concordando, e talvez até acrescentasse de modo maroto: “mas pelo menos, homem, eu sei que sou”. Nesse ponto, meu querido João, também temos nossas divergências. Ser “homem” para você não é exatamente aquilo que eu tinha em mente quando disse que é um “homem religioso”. Eu estava pensando na espécie homo sapiens, e você está pontuando, sei que em tom de piada, que “é macho sim, senhor.”

Claro que a gente costuma ser paciente com piadas espontâneas de amigos, mesmo que elas tenham alguma carga de preconceito. Mas, como diz o evangelho, nunca se diz algo que antes não estivesse habitando no coração. Certamente João não é mais aquele machista insuportável que era quando o conheci. Alguns anos depois de sua conversão, ele me apareceu na igreja com sua noiva, pedindo que eu realizasse o casamento deles. Eram de uma igreja que só realizava casamento se os noivos fossem membros da igreja.

Numa conversa preliminar que tive com os dois, João me veio com a pérola: “o homem é superior à mulher, pois foi ela quem trouxe o pecado até Adão, e deve por isso ser dominada por ele”. Enquanto eu expressava minha indignação por aquela besteira sem fundo, a noiva simplesmente baixou a cabeça, trancou os dentes e nada falou. Achei que aquilo não ia dar certo, como de fato não deu.

Parece-me que no novo casamento de João, o conluio, a parceria e a igualdade estão presentes, por isso eu penso que o impacto da dor quebrou o coração daquele machão. Mas será que a primeira esposa de João encontrou plena expressão de sua diferença? Evidentemente que seria rude levantar essa questão em meio à conversa, pois sei que se trata de algo duro para ele, mas digo agora: “não persistiria ainda em seu coração essa última barreira classificatória de gênero, querido amigo?”

Ora, se as classificações não estão na natureza, ou seja, se não temos como pressupor um ser em si mesmo que represente uma determinada classe como um todo, para que prosseguirmos nesse afã definidor, e nessa fúria classificatória? Entendo que num mundo em eterno fluir, as classificações servem como exercícios provisórios de compreensão por comparação. Fazemos conjuntos, dizemos coisas sobre aqueles conjuntos, mas deixamos sempre suas fronteiras pontilhadas em grafite 6B que é o mais fácil de apagar.

Dizia um dos pais proscritos da sociologia: “existir é diferir”. Se não tivermos paciência com o outro e conosco mesmos, nossa vida vai ser um tormento sem fim. Acabaremos colocando as pessoas em caixinhas e arrotando definições (muitas vezes imprecatórias) sobre elas… e consequentemente sobre nós (só que nesse caso, não imprecatórias). E todas essas classificações são pretensas universalidades que passam como um trator sobre o específico.

Espero que João tenha paciência para ler este artigo, e se ainda assim falar comigo, que possa expressar sua opinião.

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