Seria o termo “índio” equivocado?
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Na semana passada iniciei minhas contribuições nesta coluna afirmando que os índios do Rio Grande do Norte estão vivos e em movimento. Algumas pessoas questionaram se o uso do termo genérico índios para tratar de tão diversos grupos étnicos não seria equivocado. De fato, a referida denominação foi incialmente fruto de um erro, tendo sido adotada pelos colonizadores para se referir aos nativos encontrados no atual continente americano, em virtude do navegador Cristovam Colombo acreditar que havia chegado às Índias. Porém, o movimento indígena do Brasil vem utilizando politicamente os termos índios ou indígenas para representar a unidade dos povos originários em sua luta por direitos e interesses comuns, bem como para estimular a afirmação das diversas identidades indígenas em todo o país.
Sem negar as importantes formas de resistência indígena às iniciativas colonizadoras ao longo desses 500 anos de história do Brasil, pode-se afirmar que a década de 1970 marcou o início de um movimento indígena organizado nacionalmente. De lá pra cá, se por um lado a categoria índio ainda é utilizada por brancos com conotação pejorativa em determinados contextos, resultante de um processo histórico marcado por preconceitos e discriminações contra os povos nativos da América ainda hoje persistente; por outro lado, uniu e fortaleceu povos distintos e rivais na busca por objetivos comuns, dentre os quais estão os direitos coletivos, a demarcação e proteção das terras tradicionais e a autonomia dos povos.
Assim, a palavra índios não se refere a um único povo, nem tribo ou clã específicos. É mesmo uma denominação generalizante, porém ressignificada e reafirmada para demarcar as semelhanças dos povos originários destas terras entre si, e suas diferenças com aqueles cujas procedências remetem a outros continentes, tais como Europa, Ásia e África. É neste sentido que os povos originários do Brasil se autodenominam índios e se referem uns aos outros como parentes, diferenciando-se desse modo dos não indígenas em qualquer parte do território nacional. Acrescentadas a isso estão as denominações especificas de cada povo ou etnia, que atualmente passam de 300, com suas mais de 200 línguas e diversas formas culturais, sociais, econômicas e religiosas, demonstrando a multietnicidade presente em nosso país.
A construção de uma identidade comum entre os diversos grupos étnicos originários, somada a sua organização em nível nacional, teve reflexos significativos para a luta indígena. Além de contribuir com a conquista de novos direitos, estimulou a afirmação de identidades étnicas por parte de povos os quais, após anos de colonização, exploração e perseguições, haviam silenciado por medo ou vergonha de terem suas identidades ou origens associadas a indígena. É o caso de etnias do Nordeste, e em especial do Rio Grande do Norte, região na qual se afirmar índio significa assumir marcas coloniais ainda tão presentes nas relações vivenciadas pelos povos originários, ao mesmo tempo em que reescrevem sua história, construindo um presente e futuro diferentes, sem abrir mão dessa ancestralidade particular que lhes é cotidianamente negada.
Dado o exposto, é manifesta a diversidade existente entre os povos indígenas, mas assumir-se também através de uma identidade coletiva e nacionalmente articulada fortalece a autoestima e resistência cotidiana dessas populações as quais ainda enfrentam tantas negações. Longe da pretensão de esgotar a temática, busco apenas instigar reflexões sobre a agência dos povos indígenas e suas constantes transformações diante dos desafios que a realidade lhes impõe. Não é fácil assumir uma identidade carregada de tantos estigmas, mas fazê-lo a partir de suas próprias definições é um grande passo rumo à modificação da realidade que vivenciam.