Sidarta Ribeiro: “A ponte para o futuro é o futuro do país como colônia”
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Sidarta Ribeiro: "A ponte para o futuro é o futuro do país como colônia"

12 de novembro de 2017
26min
Sidarta Ribeiro:

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O biólogo e neurocientista Sidarta Ribeiro é categórico ao ressaltar a gravidade do desmonte da ciência pelo governo Temer. Para ele, o presidente da República é um inimigo da nação.  A razão, ou as razões, são coletadas no dia a dia dos cientistas do país. As pesquisas que não contam com financiamento do exterior estão comprometidas. O avanço da ciência impulsionado a partir do governo Lula com um volume de recursos superior a qualquer outro período da história brasileira estancou.

No início de novembro, o projeto de Lei Orçamentária Anual que o governo Temer encaminhou à Câmara dos Deputados prevê um corte de mais R$ 4 bilhões da pasta de Ciência, Tecnologia e Comunicações. O orçamento de 2017 já foi 44% menor do que no ano anterior.

Militante da ciência e um dos nomes que encabeçam nacionalmente o debate sobre legalização e descriminalização da maconha no Brasil, o neurocientista também está à frente da organização da Marcha pela Ciência que, sábado passado, ocorreu simultaneamente em cinco capitais do país. Nesta entrevista à agência Saiba Mais, Sidarta Ribeiro fala sobre os efeitos do ataque à ciência pelo governo Temer e espera que, em 2018, as eleições possam devolver o país aos caminhos que vinha trilhando antes do golpe.

A Marcha pela Ciência está ligada diretamente aos cortes de recursos pelo governo Temer ?

A SBPC tem uma longa tradição de mobilização, de luta em defesa da democracia, especialmente a partir da década de 1970. Mas nos últimos dez anos ninguém precisou marchar pela ciência nas ruas porque havia uma abundância de recursos. O governo Lula realmente criou uma situação totalmente diferente para o financiamento de pesquisa no Brasil, criou centros de pesquisa em locais que não eram privilegiados antes, como no Nordeste, Norte, Centro-oeste... os Institutos Federais (IFs) são uma iniciativa extremamente importante, a multiplicação e o fortalecimento dos IFs. Então eu diria que a comunidade científica se acomodou porque passamos muito tempo com financiamentos crescentes de pesquisa.

O grande legado do Lula na ciência é essa descentralização da ciência no país ?

É o aumento do financiamento, do aporte, e que não se concentrou apenas no eixo Rio/São Paulo. Houve a garantia de muitos recursos para desenvolver as regiões menos desenvolvidas do Brasil. O Instituto do Cérebro é fruto direto desse momento. Não haveria Instituto do cérebro na UFRN se não fosse uma política de governo como a do ex-presidente Lula. Já no governo da ex-presidenta Dilma parecia que ia aumentar, veio o Ciência sem Fronteiras... mas o fato é que logo na entrada do governo Temer começou o desmonte. Então uma trajetória que era de ascenso virou uma trajetória de cortes brutais de quase metade de orçamento, de interrupção de programas, de não pagamento de bolsas... no casos das universidades federais um contingenciamento de verba absurdo, CNPq e CAPES submetidos ao mesmo regime, as fundações de amparo à pesquisa estaduais, com exceção da Fapesp, em processo de desmonte... a Fapern já está bem avançada nesse processo porque são vários anos de muita dificuldade. E é uma situação muito grave porque não existe nenhum país soberano sem ciência e tecnologia, muito menos um país grande cheio de riquezas naturais porque é presa para todo tipo de predador que vem aqui extrair commodities. Só a nossa capacidade de agregar valor a essa riqueza natural é que pode nos redimir.

E estávamos nesse processo, mas o que vemos agora é um cavalo de pau e, na minha opinião, um governo que faz o que o governo Temer está fazendo com a ciência e a tecnologia preenche completamente os critérios de inimigo da nação. Porque desmontar ciência é desmontar o futuro. Ciência não é gasto, é investimento. Quem faz isso, há de ter muita clareza dos objetivos que quer alcançar. A gente está arriscando perder gerações de pesquisadores formados a um preço muito alto, com esforço muito grande, que agora ou estão deixando a ciência ou estão deixando o país. E isso é muito grave. E nesse sentido entra a mobilização da Marcha. Vejo com preocupação, como os ingleses em 1941. A gente acredita na soberania da nação brasileira ? Acredita, mas estamos sob ataque. Estamos sob ocupação estrangeira. Os interesses que regem o desmonte da ciência brasileira não são brasileiros.

Logo que o Temer assume o Ministério da Ciência, Tecnologia e Inovação é fundido com o de Comunicações. Qual foi o efeito disso ?

O efeito disso é brutal. O CNPq foi criado despachando direto com o presidente da República, não era ligado a nenhum outro ministério dada a visão dos criadores do CNPq, inclusive muitos militares da Marinha, pessoas que entenderam que um país do tamanho do Brasil precisava não só de fomentar a ciência e a tecnologia, mas de pensar estrategicamente esse fomento. Porque não era simplesmente fomentar os cientistas, mas debater o que a gente realmente quer com isso. O Brasil não tem pré-sal porque caiu do céu. Foi buscado lá no fundo do mar por engenheiros que tem base de física, química, biologia, inclusive, e isso é uma coisa que pode se perder. O desmonte do estado brasileiro é o desmonte do presente, mas o desmonte da ciência é o desmonte do futuro. Vai ser muito grave o momento em que nossos cientistas não entenderem mais o que está sendo publicado. A gente não é o pelotão de frente da ciência do mundo, mas também não é a retaguarda. Temos avançado nas últimas décadas e isso está em risco.

Então há uma contradição entre o a ponte para o futuro defendida pelo PMDB e o desmonte da ciência...

A ponte para o futuro é o futuro do país como colônia. E o que eles estão tentando fazer com as outras reformas é terminar o serviço, terminar de subjugar o povo brasileiro completamente e em favor dos rentistas do capital financeiro, e não do capital produtivo.

Como tem sido a interlocução dos cientistas com o governo Temer e o Congresso para conter esse desmonte ?

A SBPC tem tentado um diálogo com o Governo, manda cartas quase toda semana alertando, reivindicando, protestando... e o que acontece é que a resposta do governo é cada vez menor. O governo Temer não está preocupado nem em dar aparência de que está preocupado com esse assunto. O que temos claro é que há uma estratégia de guerra contra a ciência. A gente tem que entender que o governo está em guerra contra a ciência, contra esse segmento inteiro. O que é grave é que tem pouco cientista no Brasil, tem poucas pessoas interessadas em ciência. E o cidadão médio é a favor de ciência mas não se mobiliza para isso. Se ele fizer uma reflexão rápida vai perceber que todos os objetos que ele toca estão impregnados de ciência porque o dia a dia está tomado pela ciência.

Como a sociedade pode sentir na pele esse ataque à ciência ?

Num primeiro momento ela não vai sentir. A tecnologia que está nos produtos já está disponível, mas à medida que isso deixa de ser feito perto daqui os produtos vão ficar cada vez mais caros e menos acessíveis. Quando houver uma emergência, como foi o caso do vírus da Zika, a gente não vai ter mais equipes brasileiras produzindo um artigo sobre o assunto na Science poucos meses após a epidemia, porque não vai haver uma equipe preparada pronta para atacar essa questão. Hoje, o Brasil conta com um corpo de pesquisadores de altíssimo nível. No caso da Zika, houve uma mobilização em todo o país. Muito rapidamente houve a determinação de que de fato havia problemas neurais causados pelo vírus da Zika. Isso tudo feito por brasileiros, isso tem muito valor. No momento em que isso não acontecer e não tiver gente capaz de fazer isso no Brasil, essa questão vai ter que ser resolvida por quem ? Pelos gringos ? Pelos estrangeiros ?

Em entrevista recente você declarou que se não fosse dinheiro estrangeiro investido no Instituto do Cérebro talvez nem estaria aqui no Brasil.

A nossa situação é um pouco diferente da situação dos outros centros de pesquisas porque perdemos equipamentos quando houve aquela cisão com o grupo do (cientista) Miguel Nicolelis. Então ficamos em um período de vacas magras muito antes dos outros centros, e isso durou muito tempo. Esse fato nos obrigou a buscar recursos fora do país e quando realmente veio o desmonte do governo Temer e todo mundo está sofrendo com isso, a gente também está sofrendo, mas um pouco menos porque temos recursos de fora do país.

Qual o percentual de financiamento do exterior no Instituto do Cérebro ?

Meio a meio, 50%. E olha que até 2011 o financiamento era 100% nacional.

Mesmo nos governos Lula e Dilma haviam críticas sobre a má-gestão de recursos...

Tem uma questão complicada. Durante o melhor período do governo Lula havia questões também muito graves. O dinheiro acabava sendo muito mal gasto por uma mistura de problemas do Estado com aduana, taxação, e problemas privados de empresas que fazem, que tratam o cliente de maneira pior no terceiro mundo.

Como assim ?

O cientista brasileiro paga, em média, de três a cinco vezes mais caro por tudo se comparado ao cientista americano ou europeu. Isso é grave, mas mais grave ainda é que o tempo de entrega para o que ele compra pode ser até 300 vezes maior do que no exterior. Suponha que eu estou nos EUA e tenho a ideia de fazer um experimento para testar se um anticorpo vai ter tal reação com o tecido. Vou na internet, faço um pedido e amanhã cedo está entregue aqui. E eu vou pagar 100 dólares por isso. Aqui no Brasil você vai fazer o mesmo pedido para a mesma empresa e ela vai te entregar seis meses depois e vai cobrar 300 ou 500 dólares. Isso é gravíssimo e as pessoas não têm a menor ideia disso. Então o cientista brasileiro trabalha com esse handicap. Para algumas áreas de pesquisa isso é irrelevante, seja porque não dependem de coleta de dados, seja porque o pesquisador está só no computador, mas nas pesquisas biomédicas isso é fatal. Como é que você vai competir em pé de igualdade com os estrangeiros que têm muito mais recurso que a gente se quando você vai usar o recurso o dinheiro está amarrado com chumbo e tem um sumidouro?

O problema vem de onde ?

Em parte vem da taxação. O Estado financia a pesquisa e taxa aquele mesmo recurso que ele mesmo financiou, ou seja, não faz o menor sentido. Pagar taxa de importação para equipamento científico adquirido com dinheiro público não faz sentido. Se você quer fomentar pesquisa, se você tem a visão de que o país tem que andar pra frente, você não vai fazer isso.

E qual o papel das empresas nesse processo ?

As empresas também são um problema, mas aí tem a ver com o tamanho do mercado. E mostra porque é grave o que o Temer está fazendo. Se eu tenho 10 pessoas que compram esse anticorpo no Brasil, não faz sentido ter esse anticorpo no Brasil. Então fica lá em Miami ou em qualquer lugar. Quando se acumulam vários pedidos, a empresa manda com um frete caríssimo. Se houvessem mais usuários, poderia haver uma empresa aqui com estoque. E aí você não vai ter que fazer aduana, estará dentro do país. É também por esta razão que os cortes são muito graves. Você vai diminuir o tamanho do mercado. E isso vai tornar a gente menos interessante, ficaremos mais satélite e fazendo menos parte da grande rede da ciência.

E a capacidade de competir fica ainda mais comprometida...

A gente estava tentando competir com o primeiro mundo nos governos do Lula e Dilma apesar de todos esses problemas. Com chumbo amarrado no pé, com sumidouro, mas com muito dinheiro investido o sistema estava subindo. Agora ? É muito grave. O que você vai falar para um jovem ? Fica no Brasil para fazer pesquisa ? Perder o bonde da história num momento em que a história está andando bem devagarzinho é ruim. Mas se você perder o bonde da história na hora que ela está em crescimento exponencial, explodindo como agora, é muito ruim. Então às vezes a gente quer aprender uma técnica nos EUA, manda a pessoas fazer pós doutorado lá, e quando ela chega lá a técnica já mudou porque já é outra a técnica do momento. Por outro lado, o Brasil é muito grande para dar errado. A gente não vai dar errado. Temos que nos concentrar. Ano que vem tem eleições e temos, primeiro, que garantir que haja eleições. E em segundo lugar eleger uma pessoa que tenha compromisso com o futuro do país, com educação, saúde e ciência.

Reconhecer que deu errado não seria melhor para recomeçar ?

Mas teve muita coisa que deu certo, também temos que reconhecer. A gente tem o que perder. O Brasil não é um país bom de se viver, é um país que explora seu povo profundamente, está cheio de problemas na educação, saúde, esporte, cultura, ciência. Mas é um país cheio de conquistas. Vai olhar o que é a educação pública no interior do Ceará, em Pernambuco, vamos olhar que o Instituto do Cérebro está fazendo pesquisa de ponta e com visibilidade internacional numa casa alugada, improvisada. Temos que lutar para que isso aqui seja nosso. Se a gente não se apropriar do Brasil, daqui a 50 anos não vai ter Brasil, aqui vai ser um lugar que vende água, que vende soja, manganês e não vai ter nenhum lugar que vende ideias. E isso a gente não pode deixar acontecer.

Há algum debate na SBPC para a formação de uma bancada federal da ciência ?

Existe a tentativa, há parlamentares identificados com a causa, mas ela é pequena e porosa porque existem interesses comerciais muito grande. E às vezes a ciência está ligada a esses interesses. A verdade é que não existe na cultura brasileira um reconhecimento da centralidade da ciência na nossa experiência. A ciência é vista pela maior parte das pessoas de forma muito estranha. Porque ao mesmo tempo em que é a medida de todas as coisas, quase que da verdade, ela é irrelevante. Porque as pessoas não estão preocupadas como as coisas funcionam ou como foram desenvolvidas, elas querem usar as coisas. Então isso mistifica a ciência, fica sendo uma coisa inacessível, quando deveria ser o contrário, deveríamos nos apropriar da ciência. Em países de primeiro mundo dá para ver como a população se apropria, entende melhor aquilo que está sendo feito e aquilo que ela usa. Mas é claro que você chega nos EUA e vão dizer que há um analfabetismo cientifico, só que quando você compara com o Brasil... aqui há um analfabetismo mesmo, em grandes proporções, que dirá cientifico.

E isso é grave porque há poucas coisas que podem nos tirar do abismo sócioeconômico além da educação e da ciência. É fazer inovação e criar novas formas de produção que nos permitam fazer a distribuição equitativa e plena pra todo mundo. Não há outra forma de fazer isso senão através de investimento na ciência. E se isso for totalmente feito no primeiro mundo, sendo apropriado pela elite econômica, estaremos em maus lençóis, voltaremos ao tempo de Dom João VI, onde não podíamos nem produzir, tinha que comprar de fora.

Que áreas sofreram mais o impacto com os cortes ?

As biomédicas em geral, as empíricas, para construir um aparelho de grande custo complica tudo. Áreas em que há aporte de recurso em grande quantidade é um grande problema. Mas mesmo na física teórica, na matemática, na sociologia, na antropologia, o estrago é grande porque não há bolsas, não há dinheiro para fazer congresso, viajar, e tudo isso vai criando uma situação de desânimo, de corte de projetos, de corte de interações, muitas pessoas querendo ir embora. Eu fiquei 11 anos nos EUA, fiz doutorado e pós doutorado. Sou totalmente a favor de que a gente envie nossos melhores alunos para fora do país, para se formarem nos melhores centros e poderem voltar. Mas o pesquisador que sai do país com esse desmonte não sai para voltar, sai para ir embora e vai se enfraquecer esse propósito de construir aqui.

O governo Temer acabou com o programa Ciência Sem Fronteiras alegando que havia desperdício de recurso. Qual sua avaliação ?

O programa é positivo, mas deveria ser dimensionado adequadamente. E precisaria haver uma seleção muito criteriosa. Houve um grande sobredimensionamento. Talvez fosse possível mandar 30 mil pessoas e mandaram 100 mil. Mandaram muita gente que não estava preparada. Eu sou crítico desse investimento. A melhor forma de investir recurso, que é escasso, é investir mandando os melhores pessoas. Tem que investir na elite intelectual do país. Não sou a favor da elite econômica, mas sou a favor de que a elite intelectual possa desempenhar seu papel. A gente tem que treinar as melhores pessoas da melhor forma possível. Isso foi feito, mas foi feito mais do que era necessário. Pessoas que foram para aprender inglês ou ter uma experiência em Portugal... foi um erro. Estamos tentando deixar de ser terceiro mundo. E isso foi usado pelo governo conservador que está aqui como justificativa para acabar com o programa. Porque você tem que ter responsabilidade. Quando você manda uma pessoa para fora do país, tem que ter condições de receber ela de volta. Mas você mandou e não tem emprego para quando ela voltar. E isso é um absurdo.

Houve alguma pesquisa em andamento encerrada em razão dos cortes de verba ?

Várias pesquisas foram encerradas, outras financiadas e ninguém pagou. O CNPq está pagando 10% do universal de 2016 agora. Então você pede recurso para equipamento e elas te dão x. E você não consegue comprar e não pode fazer a pesquisa. E o que você vai fazer com esse dinheiro ? Essa é a situação da pesquisa hoje. Pagar parte da pesquisa ou não pagar é uma maneira de dizerem que financiaram uma parte, contingenciaram... mas você não pesca com meia vara de pescar, não anda de carro com duas rodas. Claro que as pessoas do CNPq estão lutando muito, mas quem está no Palácio do Planalto tem uma visão de que ciência não deveria existir.

Qual foi o papel da ciência no desenvolvimento da região Nordeste ?

Existe um movimento de fazer ciência de ponta no Nordeste, então há várias pós graduações importantes. Eu vou citar aqui um exemplo histórico que é o departamento de física da Universidade Federal de Pernambuco, hoje é um centro de excelência, então essas iniciativas no governo Lula se multiplicaram. Nosso centro (Instituto do Cérebro) é um exemplo disso. Mas o que mais me comove, mais me emociona, são os Institutos Federais (IFs). Isso pra mim hoje é o diferencial, você chegar no interior e ver aquela meninada ativa pensando, isso é investir no capital humano do país. Acho que no ano que vem, nas eleições, é pensar se a gente vai investir em nós, nas nossas crianças, no nosso futuro, ou se vamos continuar tratando o povo brasileiro como escravo, a mais-valia está aumentando. O projeto que está no poder é um projeto de aumento de mais-valia. Me mudei para cá em 2005 e ainda via várias crianças pedindo esmola no meio da rua. Mas em 2007 já não tinha mais. E passamos vários anos e você não via uma criança na rua. Via, de vez em quando, um adulto. Agora nos últimos 12 meses é só circular aqui em Natal e você vê como está.

A formação dos cientistas também não é, por tradição, uma formação popular. Com processo de cotas e a interiorização das universidades isso tem mudado ?

A ciência foi, tradicionalmente no Brasil, uma atividade aristocrática, só fazia quem tinha dinheiro. Isso começa a mudar nos anos 40 e a classe média entra na ciência a partir das décadas de 1960, 1970... mas o pobre fazer ciência é uma coisa muito recente. A cota foi fundamental porque a sala de aula mudou de cor. Mas ainda faltam negros, mulheres em cargos de representatividade.

Agora a ciência tem essa coisa muito libertária que te dá uma mobilidade se você se destaca pelo seu trabalho. Até ficar rico você pode, caso faça uma pesquisa relevante e registre uma patente. Mas a ciência organizada ainda é muito recente no Brasil, tem pouco mais de 100 anos. É diferente da Argentina, do Peru, do Chile, onde a ciência vem desde o século 16.

Aqui no Brasil muita gente passou a ver a ciência como uma carreira como qualquer outra. Então muita gente entrou assim, mas não é. Agora que as coisas estão difíceis se exige uma vocação ainda mais profunda porque a ciência trabalha com um altíssimo nível de frustração. O cientista passa três, quatro anos fazendo aquela pesquisa, escreve um artigo científico sobre aquilo, manda para a melhor revista que você consegue e os revisores detonam seu artigo. Você avalia as críticas, faz um monte de experimento para responder os caras que te criticaram... então você passa até sete anos mergulhado na mesma ideia. A maioria das pessoas não faz isso. Vai trabalhar, chega tal hora, sai tal hora e acabou. A ciência exige uma formação lenta, começar a formar as pessoas cedo para ter um olhar sobre o mundo de quem aguenta tomar “não” todo dia por anos. É mais parecido com um cara que faz kung-fu, com um esportista de alto rendimento. É uma formação preciosa que tem que ser muito bem cuidada. O Governo Temer está desmontando as estruturas que mantêm o sistema rodando, então aquele jovem talentoso que esta indo super bem, ano que vem não tem bolsa pra ele. É como o esporte, o cara faz aquele esforço todo, está ganhando medalha olímpica mas não tem quem pague o sapato dele. É um desmonte da nação, do aparato estatal que o povo tem para se defender da elite econômica.

Você também é uma das referências no país no debate sobre a legalização e descriminalização da maconha. Essa pauta tem avançado bastante. Qual o cenário hoje ?

É um debate obrigatório porque é uma revolução medicinal, médica. A medicina está sendo transformada radicalmente pela descoberta da ação dos diferentes compostos dos canabinóides e da ação deles em conjunto, o que é mais interessante do que a ação deles em separado. Ou seja, a planta pode ter mais propriedades terapêuticas do que os compostos puros. E isso é uma coisa que está muito em voga na Europa, EUA, Japão, Israel. Há 25 mil pessoas usando a planta in natura em Israel e é uma revolução médica que os médicos brasileiros estão com dificuldade de acompanhar.

Por quê ?

Os médicos brasileiros dizem que não há evidências científicas, sendo que até o Fantástico já mostrou várias evidências científicas para a epilepsia, Parkinson, depressão, câncer... as pessoas sabem que maconha é boa para o paciente de câncer porque aumenta o apetite e cuida dos sintomas da quimioterapia, mas o que apareceu os últimos anos é que a maconha é antitumoral ela mesma, isso é uma novidade e tem cinco anos só. Nos EUA é uma febre. Mas os médicos daqui não leram e não gostaram.

E você atribui essa rejeição a quê ?

No caso dos médicos há um grande conservadorismo. No Brasil, os médicos são uma elite econômica. A partir do momento em que o jovem passa no Enem para Medicina, já entrou numa casta diferente, já se consideram muito melhor que os outros. E muitas vezes os melhores alunos são mesmos os de Medicina, mas existe uma mística de que aquela é uma casta de escolhidos e acaba que a gente fica com esse perfil de médicos. E eu não posso generalizar porque está cheio de heróis e heroínas, mas há muitos médicos que estão focados no dinheiro. E acabam formando uma mentalidade compatível com sua classe social, conservadora, com o estamento onde eles estão ou onde querem estar.

Alguns sociólogos defendem que o conservadorismo da sociedade brasileira está ligada ao nosso passado escravista ainda muito recente.

Isso, temos uma herança da escravidão gravíssima. Não temos uma cultura de excelência no Brasil a não ser em determinados aspectos da cultura popular. Na música tem, na capoeira tem. Se você não for excelente na capoeira, o cara vai ter pegar na roda. Se você for ruim de pandeiro, não fica na roda de samba. A cultura da meritocracia está lá. Fora isso, em geral, ninguém gosta do trabalho. O rico não gosta do trabalho porque ele não trabalha, ele odeia o trabalho e odeia quem trabalha, tem desprezo. Estou generalizando, me desculpem as exceções. O pobre também não gosta do trabalho, também me desculpem as exceções. Mas não gosta porque o trabalho é expropriado. Ele é alienado no fruto do seu trabalho, a mais-valia come solta. Então por que o pobre vai gostar de trabalhar bem ? Faz o mínimo necessário. E a classe média quer ser rica. E a gente cria uma sociedade totalmente sabotada, onde nada é pra valer. E assim grassa a corrupção. Precisamos passar por um reset, um renascimento, quebrar com a cultura da escravidão, quebrar com a cultura de que o trabalho manual é inferior e que não pode ser remunerado. Não tem nenhum sentido um professor do magistério ganhar menos que um professor universitário. Não tem o menor sentido um pedreiro ganhar menos que um médico. Ah, mas o médico estudou muito anos. Só que o pedreiro estava construindo casas naqueles anos. Eu preferi estudar do que construir casa. Então é um pacto que tem que ser renegociado se a gente quiser sair desse mundo onde 1% ganha a mesma riqueza de metade da população.

O que ficou da polêmica entre você e o Miguel Nicolelis ?

Foi muito bom trabalhar com ele por muito tempo e foi muito ruim ter que lidar com o que o ocorreu antes, durante e depois da cisão. Como fui pós doc no laboratório dele, por mais que a gente tenha discordado e ainda hoje eu discorde profundamente do que ele fez, falou e etc... eu tenho muito respeito pelo que aprendi, como pude crescer lá dentro. Esse projeto aqui, o Instituto do Cérebro, teve muita influencia dele, tanto positiva como negativa, mas mesmo negativa nos serviu de motivação. Quando viemos para cá e não tinha equipamento nenhum porque ele estava retendo os equipamentos, a gente teve que lutar muito e isso nos fortaleceu.

Agora o Brasil é um país tão complicado... acho que a América Latina como um todo. Há uma frase que explica isso. Aqui “as coisas só acontecem com caudilhos, mas quando tem um caudilho as coisas desacontecem”. E acho que é uma explicação para os problemas que a gente teve. Nossa estrutura aqui no Instituto do Cérebro da UFRN é mais horizontal, uma estrutura baseada numa percepção mais horizontal da produção científica e é assim que eu fico à vontade, estou muito satisfeito com o que construímos aqui.

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