Sobre a dor e a delícia de ser o que é
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Sobre a dor e a delícia de ser o que é

23 de novembro de 2018
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Fui ao cinema intrigada com a recepção que Bohemian Rhapsody vinha recebendo do público brasileiro: se de um lado, espectadores mais conservadores vaiaram as cenas com demonstrações homoafetivas de carinho, o público LGBT torceu o nariz para a pouca luz que o filme colocou nos relacionamentos de Freddy Mercury com outros homens. Se o roteiro se propunha a ser uma cinebiografia de uma banda, por que tanto furor por causa de uns beijos gays?

Essa não é a única polêmica em que o filme esteve envolvido. Com muitas mãos mexendo no roteiro - dentre elas, as dos integrantes do Queen Bryan May e Roger Taylor -, o ator que faria o personagem principal foi trocado duas vezes (a primeira opção era Sacha Baron Cohen) e a direção mudou de mãos com mais de 70% do filme rodado. Sabia-se, quando foi lançada, que a obra poderia carecer de regularidade.

Idas e vindas de diretores e atores, e frisson LGBT à parte, o filme é uma tentativa de condensar a trajetória do Queen - e com uma lupa na vida de Freddy Mercury - com a estrutura clássica de uma cinebiografia. Da vida comum de um trabalhador suburbano inglês ao estrelato. Os primeiros shows, as brigas, o momento em que convites para gravações solo ameaçam a carreira do grupo. Alguns fatos, são, aliás, contestados por conhecedores da carreira do Queen - como a briga que antecede uma suposta separação. E justificados pelos fãs como “licença poética”.

O filme acrescenta pouco na lista de cinebiografias memoráveis do cinema. Denota que de fato contar uma história de uma banda com começo, meio e fim tem pouco de novo. Falta personalidade, um problema talvez consequente das muitas mãos no roteiro e na direção. Seria mais um filme mediano não fosse o que Freddy Mercury representa no panteão do rock mundial, o quão carismático era, e a extraordinária atuação de Rami Malek, que conseguiu representar com extrema competência alguém que muitos consideravam inimitável.

O filme tem momentos emocionantes porque as músicas do Queen o são e porque Freddy era hipnótico. Nada mais. Não pretende levantar a bandeira LGBT, mas acena para algo mais importante: o vocalista do Queen, assim como a própria banda, conseguiu ser tudo o que foi mesmo sendo estrangeiro, tímido, dentuço e gay. Ele era um outsider, e isso representa muito bem o espírito do rock´n roll. O inconformismo, a afronta, a afirmação da identidade, independentemente dos padrões.

Fred e o Queen foram um farol que subverteu os paradigmas do próprio rock. No figurino, na atitude, e principalmente musicalmente. A faixa que dá título ao filme é exemplo disso: Bohemian Rhapsody foi duramente criticada como single pela gravadora pela extensão (tem mais de seis minutos) e por brincar com palavras sem significado. O sucesso do Queen esteve, em grande parte, na reinvenção. A banda ousou e se transformou muitas vezes, pouco ligando para a zona de conforto.

E é com essa impressão que se sai do filme. Apesar da pouca ousadia, que contrasta com os personagens retratados, Bohemian Rhapsody é uma ode ao inconformismo, à diferença e à luta de uma pessoa a ser quem verdadeiramente é. E isso, com a onda conservadora que vivemos hoje, é revolucionário.

(Quanto aos beijos de que falei lá no primeiro parágrafo: são dois, precisamente. Singelos, carinhosos, pudicos, até, eu diria. Não assustam ninguém.)

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