Sobre a nossa violência no Netflix
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21 de novembro de 2019
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O filósofo esloveno Slavoj Zizek afirmou certa vez que os blockbusters hollywoodianos são indicadores precisos da “situação ideológica da nossa sociedade”[1]. Sua correta afirmação vale também para problemas restritos ao Brasil. Quando nos deparamos com produções nacionais de gordos orçamentos, há, quase sempre, uma representação muito próxima dos nossos problemas.

Vejamos o exemplo de Irmandade, recente série do Netflix que, segundo sua própria definição, retrata a história de “uma advogada [que] enfrenta um dilema moral depois que policiais a forçam a delatar seu irmão, que está preso e lidera uma facção criminosa em ascensão”.

A definição do site esconde a complexidade do enredo e das grandes questões nacionais que figuram na história, tal qual a atuação impecável de Naruna Costa, como Cris, a advogada (negra), de que se fala na descrição da série. Isso sem falar em figuras ilustres do cinema nacional, como Seu Jorge, que atua como o líder de uma facção criminosa, a Irmandade, criada dentro de um grande presídio paulista na década de 1990.

Sem prejuízo de importantes temas que a série traz, quero centrar este texto num ponto que tenho tentado desenvolver nesta coluna desde meu artigo anterior[2], a questão da violência brasileira.

Em seu livro Violência – Seis Reflexões laterais[3], Zizek nos chama a pensar sobre o que não podemos ver à primeira vista. Se é certo que a violência pode ser um fenômeno explícito, facilmente perceptível, também é verdade que ela ganha formas menos aparentes, descobertas tão somente quando nos dedicamos a entender sua essência.

Ao primeiro tipo de violência, aquela à qual estamos habituados e que se senta conosco à mesa do almoço diariamente por meio dos programas dos grandes jornais, dá-se o nome de subjetiva. Esta acompanha praticamente todos os episódios da série. Se você tem estômago fraco, sugiro atentar para não se deparar com cenas de tortura ou lutas corporais sanguinolentas. Tiroteios, como você pode esperar, também integram o cardápio.

Ao segundo tipo[4], aquela violência que não resulta necessariamente da agressão corporal ou emocional de um ou mais indivíduos em específico contra uma ou mais vítimas determinadas, mas sim que se depreende do próprio sistema social capitalista, que necessariamente exclui muitos à custa de poucos, chama-se de violência objetiva.

Dito isto, voltemos à série. Grosso modo, a história se inicia com a prisão do jovem Edinho (Seu Jorge). Ele, Cris e Marcel (o irmão mais novo) viviam com o pai, homem negro, periférico e religioso, quando Cris, ainda criança, descobre que Edinho estocava em seu quarto maconha em quantidade aparentemente destinada para a venda. O pai dos três, ao ser informado pela ingênua criança, denuncia o filho à polícia. Edinho, então, vai em cana e de lá não mais sai.

A penitenciária onde ele está alojado é uma espelunca onde reina a barbárie: entre os próprios presos, que fazem valer a lei dos mais forte, mas principalmente pelas mãos do diretor do presídio, que tortura como hobby.

A irmandade surge e se fortalece a partir de uma insatisfação coletiva que brota nas consciências dos presos que se veem desrespeitados por todos os lados. Edinho alcança a liderança do grupo e forma, com seus companheiros, uma espécie de rede de seguridade interna ao ambiente penitenciário. Fora dele, o crime já não é mais opção para os membros da Irmandade que são libertos. O pacto de sangue firmado entre os faccionados clama por meios de salvar os irmãos que estão presos e fazer com que a Irmandade ande com suas próprias pernas financeiramente.

A escalada da organização é notável: de uma rede de suporte à sobrevivência no presídio, a facção passa à lógica empresarial, com rigorosa gestão de procedimentos e técnicas, especialistas em determinadas práticas criminosas, perfeita divisão do trabalho.

Não é difícil imaginar quais os meios de obtenção de recursos de que lançam mão: assalto a bancos e carros fortes prioritariamente. No seio da facção, nenhum vacilo à obediência e ao código de silêncio é permitido – “cabueta”, no tribunal da rua, é morto ao menor indício de autoria.

O que a série nos ensina, portanto, é uma sutileza.

Enquanto o Edinho – adolescente negro e pobre que viu uma oportunidade rápida de fugir da miséria vendendo drogas – for colocado historicamente neste papel pela inescapável violência objetiva, o fato de ele se tornar o líder de uma facção que produz a violência subjetiva que nos salta aos olhos nunca será casual, e sim a necessária consequência deste processo de violência sistêmica.

*Lucas Arieh é membro de O Contraditório

[1]https://blogdaboitempo.com.br/2012/08/08/ditadura-do-proletariado-em-gotham-city-artigo-de-slavoj-zizek-sobre-batman-o-cavaleiro-das-trevas-ressurge/

[2] https://saibamais.jor.br/o-nascer-da-violencia-em-o-coringa-breve-ensaio-criminologico/

[3] ZIZEK, Slavoj. Violência – Seis Reflexões laterais. São Paulo: Boitempo, p. 22-25.

[4] Zizek ainda diz existir um outro tipo de violência, a simbólica, que consiste na imposição de um Sentido Universal imposto aos demais no âmbito da linguagem. Desta, contudo, não falarei neste ensaio. Cf. ZIZEK, p. 36 e ss.

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