Sobre a utilidade de se cortar uma cabeça
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Sobre a utilidade de se cortar uma cabeça

28 de setembro de 2019
Sobre a utilidade de se cortar uma cabeça

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― Bah! Vocês são uma nação de escravos! – disse Brian, que era, como quase todo bom inglês do oeste de Londres, torcedor apaixonado do Chelsea.

Já começava a madrugada em Ponta Negra entre um copo e outro de cerveja e depois de um show antológico de Yamadu Costa com a orquestra do SESI, eu já não tinha muito ânimo para controvérsias.

Naquela madrugada, Brian estava particularmente impressionado com as notícias espetaculares mostrando novos capítulos da “Operação Lava Jato”, que ululavam histericamente na mídia hegemônica.

― Não entendo como vocês suportam serem governados por ladrões. No meu país é diferente – ele disse com aquela dose básica de arrogância britânica, presença arqueológica no imaginário inglês do tempo em que a Coroa da casa de Windsor mandava em nações de um hemisfério a outro da terra – No meu país nós cortamos a cabeça do rei.

Assim ficava difícil argumentar. Matar um rei não é pouca coisa.

Brian falava de Carlos I, rei inglês, que foi decapitado em 1649, durante a guerra civil da Inglaterra. Dizem que quando sua cabeça rolou diante do palácio de Whitehall, um longo e assombrado gemido ecoou pela multidão atônita. O que seguiu a sua execução deixou marcas profundas no imaginário da modernidade. Os acontecimentos que seguiram a sua morte acabaram por colocar no poder um membro da pequena burguesia puritana (Oliver Cromwell) e lançou as ilhas Britânicas em 40 anos de conturbação política inaugurando um padrão recorrente nas revoluções modernas baseado no trinômio: “ruptura-terror-restauração”.

Foi Cromwell quem produziu um dos primeiros grandes expurgos revolucionários da modernidade, ao executar diversas lideranças camponesas que o haviam ajudado na guerra civil contra a coroa. Na engenharia das cabeças cortadas, os camponeses deixaram de ser úteis ao novo regime quando começaram a exigir uma ampla reforma agrária, que implicaria o confisco das terras dos nobres, da coroa e da igreja.

Aproximadamente 100 anos depois dos acontecimentos que conturbaram a Inglaterra e levaram a uma nova ordem política na ilha, com a assinatura da primeira grande declaração de direitos liberais, Saint Just se perguntava:

“O que querem os que não querem a virtude ou o terror?”.

A resposta que o terror burguês de Cromwell ofereceu foi uma só:

“querem a corrupção”.

Contra a corrupção cabeças foram cortadas. Contra a promiscuidade moral e os inimigos do país, do povo ou da nação, a violência divina do puritanismo da classe burguesa emergente fez sua festa autoritária.

Thomas Hobbes, profundamente marcado pelas experiências que vivenciou naqueles tempos de violência e conturbação, diante da desordem de um momento em que os referenciais simbólicos do poder foram postos abaixo junto com a cabeça do rei; teceu sua metafísica da maldade humana, apontando para a crença ideológica de que o homem só pode ser “naturalmente mal” e que a violência estrutural do soberano (lida nos dias de hoje como “Estado”) é um remédio amargo, mas necessário para manter a coesão social e proteger o ser humano de si mesmo.

Curiosamente, o terror burguês de Cromwell não é muito lembrando pelos liberais, que fazem questão de esquecer que uma de suas mais significativas revoluções gerou também sua própria “violência divina” marcada por expurgos e execuções políticas. A revolução inglesa do século XVII mostra um dado constrangedor para o discurso liberal: a evidência de que não há uma conexão necessária entre as revoluções burguesas que instituíram as bases políticas de nossa moderna sociedade de mercado e a utopia democrática que a justifica ideologicamente.

Todo mundo que estudou honestamente história sabe que as revoluções não são piqueniques ou bailes de carnaval. Elas fazem parte de um conjunto de violências disrruptivas que mudam o curso da ordem política e abrem caminho para guinadas brutais nos modos de organização das comunidades humanas.

Brian, que nasceu na terra que cortou a cabeça do rei Carlos I e morreu na terra que colocou Jair Bolsonaro no poder, após um surto sazonal de “cidadanismo” midiatizado, não chegou a ouvir meus argumentos de defesa. Para a tristeza de seus amigos e familiares ele faleceu alguns meses depois de nossa conversa, vitima de um ataque cardíaco fulminante em seu apartamento de Ponta Negra. Na verdade ele deve ter partido com uma péssima impressão dessa tendência brasileira a se acomodar diante do insuportável.

Eu poderia ter dito a ele sobre uma grande quantidade de revoltas populares abundantes na historiografia do meu país. Balaiadas, sabinadas, cabanadas, badernaços, lutas sociais e populares, guerrilhas e marchas revolucionárias pelos sertões do país, jornadas estudantis etc. etc. etc. Mesmo assim, ainda faltaria a cabeça de um rei para pormos na conta de nossas ousadias políticas. No fim temos nossas cabeças cortadas. Infelizmente, de Antônio Conselheiro à Lampião, de Tiradentes à Marighela, dos índios decapitados durante a guerra dos bárbaros aos apenados de Alcaçuz; e nenhuma delas faz parte da casta plutocrática que manda neste país há 500 anos.

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