Uma amiga muito querida minha, íntima e pessoal, relata para mim o seguinte caso:
Estava ela sossegada no seu canto, tomando sua cerveja e lendo seu livro. Nada de novo sob a terra. O livro da vez era o “Combustão”, escrito a quatro mãos por Cefas Carvalho e Jeanne Araújo e editado pela Penalux, de São Paulo, e recentemente lançado em Natal. Eu também estou lendo este livro. É um romance epistolar, em que dois ex-amantes (cujos nomes homenageiam dois malditos das letras, Gregório de Matos e Hilda Hilst) trocam cartas entre si e relembram aventuras amoroso-sexuais de outrora. Há umas passagens ótimas (“entediado com os versos bem comportados e edificantes das senhorinhas, eu degustava um uísque, felizmente de melhor qualidade que as poesias declamadas”) e outras passagens nem tanto (“desde aquele fatídico dia em que tu fostes preso”), como acontece com qualquer texto literário.
O fato é que estava lá minha amiga se deliciando com seu livro quando chegou um chato.
Tod@s temos nossa cota de chatice, claro. Minha amiga tem demais e eu aprendi a filtrar. Mas, definitivamente, alguns, em algumas situações, conseguem se superar. O chato em questão, então, olhou para o livro de minha amiga e declarou, sucinta e categoricamente:
– Eu fui para esse lançamento. Vi você lá, mamadona...
Ela, calmamente, descreve seu estado de espírito ao ouvir tal pérola:
Ó, grande Deusa, que novidade! Ó céus, que grande crítica literária!
Depois que o distinto foi embora (sem ouvir nenhum coice verbal de sua parte, porque, às vezes, ela conseguia também ser uma lady e exercer sua nobre paciência), teve que parar sua agradável leitura para refletir sobre aquele comentário.
O chato podia ter dito várias outras coisas. Podia, por exemplo, ter dito que a viu lá de cabelo preso e não solto; podia ter dito que ela estava com uma blusa preta e não vermelha; que ela estava com Beltrano e não com Sicrano etc. e tal. Podia, aliás, ter falado não dela e sim do livro, o mais importante na noite. Mas não. O comentário, crítica velada, foi de que ela estava “mamadona”.
Minha amiga me pergunta: que sabia aquele ser de minha pessoa? Nada. Mas fez questão de proferir sua opinião formada sobre tudo acerca de minha subjetividade.
Ela então prossegue: eu estava mamadona? Interessa? Se sim, vai ver que é porque eu sou uma madona. Porque, diferente dele, paladino da moral e dos bons costumes, não precisei até agora pagar minha cerveja às custas de um cargo comissionado a base de bajulação de poderosos escusos e escrotos. Porque bebo sim e estou vivendo. Porque reatualizo essa herança ancestral herdada, quem sabe, das mênades do século V antes de Cristo, as alegres e loucas seguidoras do culto a Dioniso, o deus grego do vinho e da embriaguez.
Fiquei pensando nesse episódio vivido por minha amiga... Podia ter sido comigo. Não parava de pensar nisso e o que me ocorria era indagar: por que isso incomoda a certas pessoas? Ela não estava dirigindo. Não estava cheia de ódio e armada com um .38. Não ameaçou e nem ofendeu ninguém. Estava só de boa comemorando seu pilequinho e mais um livro no mundo.
Agora, quanto a mim, já que é para se ser categórico, penso que se trata do mesmo ranço de milênios atrás e que continua se reatualizando nos dias de hoje, em nome de uma cartilha – tirana – de “como viver a vida que não é sua”: uma aversão à diferença e à liberdade de escolha, com doses de machismo e pitadas de hipócrita ética, tudo junto e misturado na boca pequena da vidinha de pacata província.
O mais curioso é o cenário: o lançamento de um livro de viés (dentre outros) erótico, assinado também por uma mulher.
Lembro-me, assim, de autoras de literatura erótica, todas mamadonas, que foram igualmente taxadas, criticadas, censuradas. A já citada Hilda Hilst, claro, é referência. O caderno rosa de Lory, por exemplo, além de ser um tapa na cara da hipocrisia (dos machos editores, autores e leitores, quem quiser saber que vá ler), é também uma obra que incomoda por ousar abordar aquilo que todos veem e fingem não ver.
Mas a grande referência, para mim, é Anaïs Nin. Depois que ela (e a mãe) foram preteridas pelo pai (marido), iniciou sua produção literária, também epistolar, recheada de cartas para os muitos amores e para si mesma. Mais do que amante de Henry Miller, Anaïs foi libelo sobre o que é ser mulher, boêmia e intelectual, exemplo de emancipação humana, cagando e andando, feito boa vaca de belas tetas, para os moralizadores de sua época, apolíneos da ordem e do progresso que também teimam em se repetir. Monotonamente.
Pois em homenagem à minha amiga e a todas essas loucas (ma)madonas de hoje e de sempre, consagradas e anônimas, para além das Damares e junto das Marielles, eu, que não sou poeta, dedico este poemeto em que um dia, quando quis, me meti:
Certos homenzinhos
Querem uma mulher pra foder de mil e uma maneiras
Mas ela que não queira
Beber, trepar com todos, falar palavrão.
Ah, não...
Isso não pode!
Homem, faz favor!
Vê se não fode
Com minha paciência.