Sobre os lugares de fala
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Sobre os lugares de fala

29 de dezembro de 2019
Sobre os lugares de fala

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Nesta semana, deu o que falar o artigo de Antonio Risério sobre lugares de fala.

Há inúmeras obras e autores que já discutiram acerca desse conceito, fomentado no âmbito de estudos diversos da Sociologia e da Análise do Discurso e que, em síntese, teria (também) a ver com um conjunto de condições (históricas e sociais) necessárias para “autorizar” e/ou “deslegitimar” um dado sujeito a se pronunciar (não apenas verbalmente) acerca de determinado tema ou objeto discursivo.

Li e ouvi opiniões diversas sobre tal artigo, mas o que me pareceu mais recorrente foi a opinião (principalmente entre aqueles que poderiam ser simplisticamente classificados como “esquerda caviar”) que o próprio Risério foi tão “sumário” quanto aqueles que critica, aqueles que, no seio de suas militâncias e coletivos, usam o conceito de lugar de fala para defender práticas que revelariam em última instância um “fascismo identitário”.

Excessos e simplismos à parte, estou com Risério quando se refere ao que se pode compreender como fascismo: “qualquer iniciativa que vise a exercer controle ditatorial sobre postura e pensamento dos outros”. Muito tempo antes, Michel Foucault falou exatamente sobre isso, no prefácio que escreveu para o livro O Anti-Édipo, de Deleuze e Guattari (dois filósofos da diferença) e que intitulou como “Introdução a vida não fascista”. Cito um trecho em especial:

Não somente o fascismo histórico de Hitler e Mussolini – que soube tão bem mobilizar e utilizar o desejo das massas - , mas também o fascismo que está em todos nós, que ronda nossos espíritos e nossas condutas cotidianas, o fascismo que nos faz gostar do poder, desejar essa coisa mesma que nos domina e explora.

Há uma infinidade de pequenos casos de grupos reunidos em torno de pertenças identitárias que se comportam tão igualmente excludentes e opressoras quanto aqueles que supostamente alegam combater. Faço referência rapidamente ao caso de Fabiana Cozza, sambista “raiz” e afilhada de Dona Ivone Lara, “proibida” de interpretar a grande Dama do Samba no teatro por não ser suficientemente negra (!!!). Talvez fosse também isso o que Leminski intuía quando escreveu aquele poema:

Eu não milito.

Militar

Me limita.

Evidentemente, formas de organização (de associações de amigos a sindicatos de trabalhadores) podem ter seu valor, principalmente se se posicionam e lutam efetivamente contra a desigualdade social e todas as formas de negação à dignidade humana. Evidentemente, representatividade existe. Por exemplo: uma mulher negra tem pautas feministas diferenciadas (Djamila Ribeiro explicou magistralmente: enquanto mulheres brancas exigiam o direito de sair para se divertir sem o marido, isso nunca foi bandeira para uma mulher negra, mais preocupada em ter um emprego digno e dar de comer aos filhos). Mas o que para mim é evidente também é que, para ilustrar o que quero dizer, é que eu e você não precisamos ser gays para abraçarmos a causa LGBT... E por aí vamos...

Não tenho uma agenda ou manual com um passo a passo para ações anti-fascistas (de direita e de esquerda). Sei que o importante é refletir, questionar, colocar em discussão e, sobretudo, respeitar as complexidades humanas, no que se inclui o respeito às diferenças e às liberdades individuais (o que pressupõe, necessariamente, dignidade quanto à alteridade). Nem me estendo muito quanto a isso, por mais que possa ser enquadrada como levianamente simplista ou sumária. Claro que isso não implica dizer que todos podem e/ou devem então falar sobre tudo que vai estar tudo bem. O que quero dizer é que continuo crendo que, para certas teses, não há que se gastar tinta ou saliva demais argumentando. Tal como fez o mesmo Foucault em um episódio narrado por Roberto Machado: um colega, que punha em dúvida a legitimidade de Foucault em abordar determinado assunto, perguntou sobre o lugar de fala de onde ele alegava o que dizia, ao que Foucault teria respondido, ironicamente:

- Desta cadeira.

Quanto a mim, por ora, só quero saber de uma cadeira de praia e um lugarzinho para férias lá em Canoa Quebrada para esquecer um pouco deste mundo fascista em voltamos a nos atolar.

E a luta continua em 2020!

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