Sobre ser mulher (TRANS) no Brasil
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Sobre ser mulher (TRANS) no Brasil

7 de setembro de 2017
Sobre ser mulher (TRANS) no Brasil

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Ser mulher no Brasil é difícil. É dureza. Talvez tenhamos outros países no mundo onde a condição feminina seja ainda pior. Talvez no mundo islâmico, onde mulheres precisam de autorização dos maridos ate pra dirigir carros ou disputar competições esportivas. Talvez na Índia e sua aparentemente tolerável aceitação de uma cultura de estupros coletivos. Sem falar na mutilação genital ainda largamente praticada em muitas regiões.

Sem duvida, existem muitos outros lugares do mundo onde o respeito à condição feminina avançou muito. Legislações protetivas e mesmo gestos de civilidade mais evoluídos têm permitido que mulheres vivenciem algo bem próximo de uma equidade de gênero. Os países escandinavos, o Canadá, a Austrália são alguns desses locais.

Digo isso, pois precisamos ter noção de qual é nosso lugar de misoginia num mundo que, não é de hoje, respira machismo e arrota patriarcado. Como resultado disso, a violência sexual e mesmo letal contra as mulheres continua a exercer-se quase como se não tivéssemos saído da antiguidade.

Nestas horas, pensar análises de apelo universalista como “A dominação masculina de Pierre Boudieu” ganha muito mais propriedade. É tentador achar que nada ou pouca coisa mudou num mundo, num Brasil, onde uma mulher que vai pra escola ou ao trabalho no seu mais banal cotidiano seja surpreendida por uma ejaculação em seu pescoço, e isso possa ser tratado com relativa normalidade pela maioria das pessoas que se posicionem sobre o episódio.

Mesmo que a condição psíquica do individuo que perpetrou tal ato seja digna de cuidados e possa de alguma maneira, senão justificar, ao menos explicar a motivação de suas ações, vejo algumas coisas graves aí. Em primeiro lugar, a maneira como tal justificativa tem sido utilizada para minimizar o ato. O fato de ele ser doente mental não diminui em nada o desconforto, o constrangimento e o trauma das mulheres que foram violentadas - sabe-se hoje que foram mais de 10 ataques do tipo desde 2006.

Em segundo lugar, o precedente perigosíssimo de nossa justiça - com a decisão de um Magistrado homem que mesmo sem a informação do suposto transtorno mental ainda assim não achou ter havido violência ou constrangimento com o fato de uma pessoa estar no transporte público e receber uma ejaculação no pescoço. E em terceiro lugar, por que será que nunca lemos noticias de mulheres que graças aos seus problemas mentais saem por ai se masturbando e ejaculando nas pessoas?

Não lemos essas noticias pois elas não existem, e elas não existem porque a nossa sociedade sancionou como natural uma suposta necessidade sexual masculina que seria maior que a feminina. E assim, compreende-se que homens desequilibrados possam extravasar sua carência sexual com masturbações, encoxadas, e mesmo estupros clássicos - quando existe a penetração. No entanto, essa é a mesma sociedade que judicializou em vários estados a possibilidade de mulheres amamentarem em publico, pois tal gesto podia ser entendido como atentado ao pudor.

Parem o Brasil que eu quero descer!

Amamentar em público pode ser atentado ao pudor, masturbar-se e ejacular no próximo não? É mais ou menos essa a mensagem que nosso judiciário deixa para todas as mulheres que são cotidianamente vítimas de abusos nesse país.

E isso porque estávamos falando da condição da mulher cis no Brasil. Falar da condição da mulher trans é ainda mais delicado. Estamos no país que responde por quase metade de todos os homicídios contra pessoas transexuais no mundo. É isso mesmo. Pasmem (todos os que respeitam a dignidade humana e o direito do outro de existir): de todos os assassinatos registrados no mundo contra pessoas trans, 40% acontecem no Brasil, o que faz com que tenhamos uma terrível e triste estatística - a expectativa de vida das pessoas trans no Brasil é de somente 35 anos, nada menos que 40 anos menos que a média da população cis - não trans.

Isso não é chocante pra você, leitor??? Pra mim é, deveras. E não é só porque sou trans, é porque eu também me choco com os números da violência racista e não nasci negra. Também me choco quando vejo a violência contra os idosos e estou bem longe da terceira idade - existe uma grande chance, de acordo com as estatísticas, que eu jamais chegue lá. Ainda reprovo a xenofobia e não sou estrangeira. Condeno a tortura e nunca fui torturada. Não precisamos viver algo pra sermos solidários com quem vive aquilo, basta que nos lembremos que somos todos passageiros de uma única nave mãe: a espécie humana.

Nossa! Parece absurdo ter de lembrar isso as pessoas.

É porque somos mulheres trans, pessoas trans em geral, seres para o qual a categoria humanidade não está dada, precisa ser conquistada. Somos aquilo que Agambem chamou de “vida nua”, ou seja: nossas vidas não têm as garantias que outras vidas gozam. A própria vida da mulher cis, apesar de todas as dificuldades, é protegida por legislação especifica, enquanto nós mulheres trans, sequer temos o direito de fazer um xixi em paz. Recordo-me do título de um artigo do meu caro amigo Cássio Serafim: “Ela só queria usar o banheiro”. Parece algo surreal mas é isso: quantas pessoas passam por um dilema, as vezes sofrendo agressões verbais e até mesmo físicas, quando necessitam usar um banheiro publico?

Somos pessoas sem lugar, sem direitos, sem visibilidade, apesar da presença física cada vez maior, fruto de uma resistência que se recusa a ser apagada da história. Mais ou menos intelectualizadas, mais ou menos politizadas, mais ou menos glamourizadas, estamos ai, cada vez mais presentes. Não aceitaremos mais ser reduzidas à vida no Gueto. Não nascemos pra ser somente profissionais do sexo ou do mundo da estética (cabelo, unhas, maquiagem e etc). Somos isso sim, e muito mais também. Somos o que quisermos ser. Não existe um destino para as mulheres trans, o de serem mulheres em falta (pela ausência da vagina) e por isso serem ainda mais mal tratadas nas relações com homens hetero - pra quem não sabe, os homens que buscam mulheres trans são os mesmos que buscam mulheres cis, salvo raras exceções.

Qual mulher trans não já ouviu de um parceiro eventual “Eu poderia estar com uma mulher de verdade e estou com você”, ou seja: ele nos faz uma “caridade”, abre um precedente que tudo temos que aceitar pra viver com aquele homem. Isso é um duro golpe na auto-estima, no amor próprio das mulheres trans, que acabam aceitando essa condição de inferioridade e aceitando relações abusivas que muitas vezes descambam na sua destruição física pelo parceiro.

Quando uma mulher cis sofre violência, ela busca uma delegacia da mulher e aciona a leia Maria da penha. E quando uma mulher trans é violentada, a que lei e a que delegacia ela pode recorrer? Alguns podem dizer, a delegacia da mulher também atende mulheres trans. Bom, quem disse isso, nunca foi numa delegacia da mulher na condição de trans, solicitar ajuda. A ajuda que nós mulheres trans muitas vezes recebemos, foi a de nossas poucas mais importantíssimas pioneiras.

E aproveito para deixar minha reverência a grande Rogéria, que agora nos deixou. Rogéria, gerações de trans, travestis, gays, te devem o pioneirismo de se assumir, de conquistar um espaço, de estar na mídia dizendo o quanto é normal ser trans, muito obrigada.

Para finalizar, uma nota sobre a novela da Gloria Perez: nunca antes a questão trans teve uma visibilidade tão bonita no país. E para aqueles que acham que o papel da Ivana teria que ser feito por um trans eu digo o seguinte: isso é mais um estereótipo. Pessoas trans têm que estar na TV, no cinema e em todos os lugares sim. Não necessariamente no papel de trans, porque representar o papel de si mesmo não é arte, é a realidade. Quero ver pessoas trans na mídia fazendo papeis de mulheres e homens cis, representando outras pessoas que não elas mesmas, por que a arte cênica é isso. Não é fazer o mesmo, é fazer o outro.

Lutemos sempre, avante pessoas, mulheres, trans.

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