STF traça a linha entre déspotas e democratas
Natal, RN 26 de abr 2024

STF traça a linha entre déspotas e democratas

8 de novembro de 2019
STF traça a linha entre déspotas e democratas

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Brecht disse que não há nada mais parecido com um fascista que um burguês assustado. Seu diagnóstico tem fundo histórico. O apoio da burguesia e de seus ideólogos foi essencial para a ascensão do nazifascismo. Não foi à toa que Paulo Guedes, seguindo a boa tradição dos Chicago Boys, viu no Uber da direita neandertal o melhor veículo para a pilhagem do Estado via reformas como a da Previdência.

A lógica permanece até hoje.

Vez por outra o fantasmagórico espantalho da ameaça comunista retorna como bode expiatório de medidas autoritárias, mostrando que, no fim das contas, a defesa de liberdades individuais dura até a democracia virar um inconveniente.

O STF julgou na última quinta-feira a constitucionalidade do artigo 283 do Código de Processo Penal. Seu conteúdo é claríssimo: "ninguém poderá ser preso senão em flagrante delito ou por ordem escrita e fundamentada da autoridade judiciária competente, em decorrência de sentença condenatória transitada em julgado ou, no curso da investigação ou do processo, em virtude de prisão temporária ou prisão preventiva".

Mais claro ainda é o artigo 5º, LVII da Constituição Federal, segundo o qual ninguém será considerado culpado até o trânsito em julgado de sentença penal condenatória. Defendê-lo virou o Rubicão que separa déspotas e democratas. “Quanto a ela, discordar, sim. Divergir, sim. Descumprir, jamais”, discursou Ulysses Guimarães sobre a Constituição no dia em que foi promulgada.

Ulysses era um liberal. Talvez a última espécime deles. Hoje, liberais que ocupam postos importantes na república acreditam que a lei e a Constituição devem ser descumpridas. Fazem ginásticas interpretativas, torturam dados e lançam mão de teses lunáticas na expectativa de que seja aceito e tolerado o desrespeito à lei.

Recorrer a temas morais e falsear dados foi a alternativa encontrada pelos ministros Fux, Fachin e em especial Barroso, cães fiéis do lavajatismo, para convencer que o que está na Constituição é inconstitucional. Barroso superou a retórica de tiozão: para defender a prisão após a condenação em segunda instância, fez malabarismos para concluir que favoreceria os mais pobres.

A civilização impõe o prestígio à liberdade. Na dúvida, deve-se se manter o réu livre até que haja a certeza de culpa. Por mais que a chamada presunção de culpabilidade diminua no decorrer de sucessivas condenações judiciais – é esta a principal tese do lavajatismo -, até o fim do processo ela ainda existe. E se ainda existe, há a óbvia possibilidade de condenações serem reformadas. Manter enjaulado alguém que pode ser considerado inocente é um risco que não cabe no mundo que surgiu após Luís XVI ter perdido a cabeça.

Apenas na teoria. Claro.

A senha para arrombar a institucionalidade de 2016 para cá foi o "combate à corrupção", assim como em 1964 os militares golpearam Jango a pretexto de moralizar o país. O script é antigo. Carlos Lacerda e a UDN tentaram sucessivamente golpear Vargas e Juscelino sob os mesmos motivos. O famoso “mar de lama” (sequer cuidaram de atualizar a metáfora). Sem falar no antipetismo, neto bastardo do mesmo anticomunismo que serviu de mote para o Estado do Novo e para a ditadura militar.

Não há sinais de que a equação tenha mudado. Pelo contrário. Está aí a Vaza Jato para abrir as cortinas da fraude cínica dos que se dizem escravos da lei mas não fizeram cerimônia em encarcerá-la em suas gaiolas morais. São apenas liberais assustados, diria Brecht, dispostos a abrir mão de conquistas civilizatórias em nome de um bem maior. Filigranas, nas palavras de Deltan Dallagnol. Socos em jornalistas, segundo Augusto Nunes.

Samuel Johnson, escritor inglês, dizia que o patriotismo é o refúgio dos canalhas. O moralismo e o antipetismo também.

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