Tá errado, mas pode !
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29 de abril de 2018
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No último dia 25 de abril, o STF divulgou em seu canal de notícias que a queixa-crime do deputado federal Jean Wyllys (PSOL-RJ) contra o também parlamentar Jair (Messias) Bolsonaro (PSL-RJ) foi julgada extinta em decisão monocrática do Ministro Celso de Mello.

A Petição de nº 5.626 do Distrito Federal tinha como objeto a acusação de que o ‘suposto’ ofensor (o Jair) teria perpetrado palavras ofensivas e de caráter preconceituoso contra a vítima (o Jean), atingindo sua honra e dignidade sexual, de modo a caracterizar ilícitos de injúria e difamação, previstos no Código Penal brasileiro.

O fundamento da decisão se ampara no art. 53, caput, da Constituição Federal, no qual está assegurada a imunidade parlamentar e que tem como fim garantir o exercício livre e independente do mandato representativo.

Ademais, pauta-se em precedentes do próprio STF e no parecer do Ministério Público Federal, para os quais a interpretação do dispositivo constitucional é a mesma: a imunidade parlamentar exonera qualquer congressista – bem assim o congressista em questão (o Jair) – de qualquer responsabilidade civil ou penal “eventualmente resultante de seus pronunciamentos no âmbito da Casa Legislativa (...)”. Mais do que isso, a imunidade é entendida como absoluta, quando se trata de manifestações (opiniões, palavras ou votos) que sejam expressadas nesse ambiente.

Mencionando vários doutrinadores, o Ministro faz destaque de uma citação que reflete bem o ethos desse entendimento:

Em consequência de tal determinação, o congressista usufrui de uma proteção ampla, integral, ininterrupta, sempre que atua no exercício do mandato.

Sua palavra é livre, desconhece peias e limitações. Vota pelo modo que lhe parecer mais digno e que melhor se coadune com os reclamos de sua consciência. Emite opiniões desafogadamente, sem que o atormente o receio de haver incidido em algum crime de calúnia, de injúria ou de difamação.

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Há, pois, em verdade, uma ampla irresponsabilidade, que não tem outros limites, senão aqueles traçados pela Constituição.

Deste modo, se o congressista ocupar a tribuna, diga o que disser, profira as palavras que proferir, atinja a quem atingir, a imunidade o resguarda.

Acompanha-o nos instantes decisivos das votações. Segue-o durante o trabalho árduo das comissões e em todas as tarefas parlamentares, dentro do edifício legislativo. Transpõe, mesmo, os limites do Congresso e permanece, intangível, a seu lado, quando se trata do desempenho de atribuições pertinentes ao exercício do mandato (RUSSOMANO, 1960, p. 140-141)[1].

O argumento prossegue com a tese da liberdade de expressão e de pensamento, pois sem ela o Poder Legislativo não pode atuar na representação ‘corajosa e livre dos interesses do povo’, manifestando, assim, suas variadas correntes. Aqui, portanto, há de se abarcar o direito ao dissenso, mesmo que de sua prática possam resultar posições, opiniões ou ideias que não reflitam o pensamento eventualmente prevalecente em dado meio social ou que, até mesmo, hostilizem severamente, por efeito de seu conteúdo argumentativo, a corrente majoritária de pensamento em determinada coletividade”...

A liberdade de manifestação de pensamento, fundamentou o Ministro, visa garantir não apenas o direito daqueles que pensam como nós, mas, igualmente, proteger o direito dos que sustentam ideias que odiamos, abominamos e, até mesmo, repudiamos!”

Com todas essas teses, constrói-se o amparo legitimador da imunidade parlamentar aplicada ao caso para, então, compreender-se seu impacto prático: a exclusão da tipicidade penal do ato. Numa leitura simplificada dessa expressão, isso significa que se em circunstâncias comuns tais ofensas se caracterizariam como delituosas e atentatórias à honra, sua prática por um congressista e em ambiente parlamentar afasta essa tal natureza de delito. O que alguns poderiam resumir na simples expressão “tá errado, mas pode!”.

Conforme citação de precedentes do próprio STF, “não há possibilidade de infração da lei, porque a lei não chega até lá (...)”.

Estamos aqui diante de uma situação de uso amplíssimo da liberdade de expressão entendida como requisito para a democracia, mas que também nos coloca diante de uma pergunta pertinente em tempos de intolerância, discursos de ódio e fascismos: quais as limitações legítimas a essa liberdade em uma sociedade democrática?

Isso exigiria um esforço de reflexão que, como vimos, a decisão monocrática aqui comentada, tampouco as tantas outras que ali foram citadas como precedentes se dedicaram a enfrentar.

É evidente que a liberdade de pensamento e de expressão deve ser entendida como uma forma protegida de discurso que apenas poderá ser legitimamente regulada sob condições muito restritas. Também é sabido que nenhum direito é absoluto, ao menos em tese. Contudo, na hipótese da imunidade parlamentar, deparamo-nos com o argumento, tomado como uma evidência inquestionável, de uma inviolabilidade absoluta do congressista, mesmo diante do cometimento dos tais ilícitos contra a honra.

Como um dos fundamentos do direito, se o homem não for livre e estiver determinado por certas circunstâncias, não poderá ser responsável por seus atos. Liberdade e consciência caminham unidas, de modo que se não há liberdade, não há responsabilidade.

No caso da imunidade parlamentar, o processo é inverso: há máxima liberdade, sem responsabilidade civil ou penal que atinja seus agentes. Numa perspectiva abstrata, compreender a liberdade de expressão como algo que possa ser exercido sem amarras é algo desejável. Mas a experiência concreta vem revelando que em cada sociedade existem matizações a tal uso, denotando aquilo que se deseja enunciar como valor humano e aquilo que se deseja conter, pois degrada os princípios democráticos, rumo à eliminação do outro.

Tudo isso nos evoca a um verdadeiro processo de reflexão em direção a uma democracia mais autêntica, bem assim possui a potência de abrir um novo horizonte constituinte para o exercício de direitos e poderes por nossos representantes – os representantes do povo – inclusive o Jair. Afinal, o ‘Messias’ Bolsonaro ainda voltará!

[1] RUSSOMANO, Rosa. O Poder Legislativo na República. Rio de Janeiro: Freitas Bastos, 1960.

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