Eu não sou poeta. Muito menos poetisa. Quem me conhece, pessoalmente ou por livros, sabe que minha paixão é a prosa, o que não quer dizer que eu não adore (e necessite de) poesia.
Como se sabe em Natal, a cidade tem uma tradição de comemorar no dia 14 de março (em homenagem a Castro Alves), com figuras como Plínio Sanderson, Jota Medeiros, Civone Medeiros, Venâncio Pinheiro, Jeovânia Pinheiro e tantos outros e outras com incontáveis movimentos que legitimam, sem maldade, aquela máxima de que em cada esquina há mesmo um poeta.
Oficialmente, desde um decreto da ex-presidente Dilma Roussef, o Dia Nacional da Poesia passou a ser em 31 de outubro (agora em homenagem a outro grande mestre, Carlos Drummond de Andrade). Mas Natal mantém sua história e continua não só consagrando o 14 de março como também rendendo bons poetas. Nesses dias, aliás, eu venho me deliciando com alguns desses bons frutos, como Géssyca Santos e seu “Autópsia” e Marina Rabelo com “Stella e outros poemas de amor”. Mas aqui vou comentar um livro em especial que me comoveu demais: “Quanto mar cabe no sal da lágrima”, de Thiago Medeiros.
Este é o quarto livro de poesia de Thiago Medeiros. Após publicar, de modo independente, os títulos “Para eu para de me doer” (2016), “Meio-dia” (2018) e “Ardência” (2020), Thiago foi contemplado pela Lei Aldir Blanc e reuniu não só uma rede de afetos que o acompanha na vida e na produção de seus livros, mas também uma leva de poemas que registram cada vez mais a evolução de seu lirismo.
Como definir o lirismo de Thiago Medeiros? Tarefa complexa que eu não me atrevo a dar conta (a gente sabe que os enquadramentos nunca dão conta das sutilezas de tudo). Mas eu me arrisco a dizer que o seu olhar sobre o cotidiano é tão cheio de sensibilidade que pode tocar qualquer um. Eu, pelo menos, me senti profundamente tocada quando, sozinha certa manhã numa praia, li versos como esses:
há um século e meio
contemplo os azulejos encardidos do banheiro
os cabelos cresceram
a pouca barba feito mato nas cicatrizes do rosto
unhas feito garras querendo segurar o mundo
os dias testando o corpo
até onde ele pode suportar uma saudade?
Desse jeitinho, Thiago vai colhendo de cenas aparentemente banais e prosaicas os ingredientes para abordar esses sentimentos humanos, demasiadamente humanos, tal como na simples cenografia de um chão coberto de cabelos:
quando mainha me visita
esquece seus cabelos por toda parte
como se fosse para eu não esquecer
de me cobrir com o lençol perfurmado pra me proteger
do sereno da noite
quando mainha me visita deixa seus longos e pretos
e brancos cabelos
mais em mim do que na casa
os cabelos de mainha são oceanos inteiros de Zila,
de Sophia, de Iemanjá
os cabelos de mainha guardam segredos
como no mais alto mar da noite
me enlinho pra tentar me proteger
é com eles que me salvo dos afogamentos do mundo.
Assim mesmo desse jeito. Sem muitos malabarismos e quiproquós, a poesia de Thiago Medeiros mostra neste livro (dividido em quatro partes: enchente, estuário, beira-mar e naufrágio) o quanto coisinhas mínimas e miúdas podem ser vistas e ditas de um modo vasto e valoroso.
E um detalhe a mais: este livro é a inauguração do selo Insurgências Poéticas como empreendimento editorial, na arriscada aventura de não ser só autor como também editor, tal como fizeram outros poetas feras da cidade de Natal, como Adriano de Sousa com o selo Flor do Sal e Marize Castro com o selo Una.
O livro de Thiago Medeiros pode ser encontrado no Estúdio Carlota e por meio do site ou diretamente com o poeta (@insurgenciaspoeticas e @praeuparardemedoer).
E viva a poesia, todos os dias!