Tudo bandido
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12 de maio de 2021
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Em 1919, o escritor tcheco Franz Kafka publicou uma de suas novelas mais inquietantes. Na colônia Penal havia sido escrita em 1914 e apresentada em uma leitura pública na galeria Goltz, em Munique, ocasião em que, segundo rezam as lendas que povoam toda boa biografia literária que se preze, algumas senhoras teriam desmaiado, perturbadas com os detalhes sinistros da prosa kafkiana.

A história narra o confronto entre um explorador europeu, crítico do sistema de punição penal instalado em uma colônia nos trópicos e o oficial militar encarregado de administrar o sistema de execução.

Na novela, o sistema de punições implantado naquela ilha colonial castigada por uma luminosidade causticante e um calor abrasador, era protagonizado por uma intrincada e complexa máquina de tortura e extermínio.

A máquina consistia numa estrutura de engrenagens, correias e roldanas, que manipulava um conjunto de agulhas que, por meio de uma programação (tipo aquelas com cartões perfurados usadas no inicio da era dos computadores) inscrevia a sentença do condenado na sua própria carne.

Como explica o personagem do oficial militar ao explorador estrangeiro: “cada agulha comprida tem a seu lado uma curta. A comprida é a que escreve, a curta esguicha água para lavar o sangue e manter a escrita sempre clara.”

Com esse sistema de impressão da sentença penal condenatória na carne dos condenados, os submetidos a esse ritual mecânico de suplício, eram amarrados a uma cama de algodão e tinham a boca tapada para que seus gritos não pudessem ser ouvidos. Em um processo que durava doze horas, a máquina de execução penal ia, a cada momento, repetindo o percurso de rasgar a pele e lavar o sangue, entrando cada vez mais no interior do corpo do condenado, até que este, desgastado por horas e horas de tortura ininterrupta, morresse com as palavras de sua condenação desenhadas em sua própria carne.

A questão é que, como logo descobriu o explorador, o condenado, além de não ter direito a se pronunciar em sua defesa, morria sem saber o motivo pelo qual estava sendo punido, posto que não tinha nem acesso a sua acusação, nem mesmo podia ler a sentença que deveria ser gravada, com sangue, nas suas costas.

Como toda grande obra literária Na Colônia Penal tem múltiplas camadas interpretativas. Pode ser lida como uma denúncia do colonialismo europeu nos trópicos; uma antecipação profética do horror nazista, que levaria toda a família de Kafka (um judeu de origem alemã) a morrer em campos de extermínio durante a guerra; uma rememoração dos métodos da inquisição ibérica que condenava sem direito a defesa nem julgamento justo os judeus sefarditas pelo simples fato de serem descendentes do “povo que matou Cristo”; uma forma de lidar com a ansiedade psicanalítica de conviver com a figura de um pai castrador; uma parábola teológica sobre a condição da humanidade, obrigada por um Deus ex-machina a padecer eternamente por crimes que não sabia bem se tinha ou não cometido.

O fato é que me lembrei na hora dessa novela de Kafka quando soube da declaração do vice presidente da República, Hamilton Mourão, acerca dos mortos na favela do Jacarezinho, na semana passada.

“Tudo bandido”.

O vice presidente fez eco a afirmação de uma parcela muito substancial da população brasileira que comemorou efusivamente e vibrou com prazer quase sexual com a operação da PM que deixou quase de três dezenas de mortos na comunidade da Zona Norte da capital fluminense.

Na consciência padrão de parte muito significativa de meus compatriotas, habitantes dessa ilha colonial em forma de continente, os mortos do Jacarezinho não precisam ter seus nomes revelados, seus atos investigados, seu passado analisado, muito menos uma defesa formulada em um julgamento justo.

Como se estivéssemos presos naquela ilha colonial kafkiana, a máquina intrincada de execução e tortura é usada no Brasil há tempos. O início de seu funcionamento se perde na memória e sua repetição neurótica se mantém como um eco das mesmas práticas usadas contra as gentes que vinham da África nos navios negreiros e aportavam, com corpos marcados a ferro quente, nas praças do mercado da costa brasileira para serem vendidos como commodities, menos dignas de respeito e cuidado do que cavalos e jumentos.

A máquina kafkiana, no Brasil da inquisição e da escravidão permanente, nunca foi desligada. Ela continua seu trabalho ininterrupto de extermínio e tortura que já dura cinco séculos.

Vivendo muito longe de qualquer utopia jurídica que os traga para o mundo do direito moderno, os moradores do Jacarezinho, independente de qualquer crime que tenham ou não cometido, já estão previamente condenados e, mesmo que não saibam o porquê, podem ser executados a qualquer momento, tendo a sentença que justificou sua morte gravada com sangue em seus corpos.

Basta para isso que algum “oficial militar”, como um Deus Ex-machina, da altura de um poder transcendente que não se pode pôr sob nenhuma suspeita, anuncie para o país duas palavras que substituem séculos de esforço jurídico civilizatório.

Bastam duas palavras.

“Tudo bandido”.

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