Um obtuário afetivo para Paulo Henrique Amorim
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Um obtuário afetivo para Paulo Henrique Amorim

12 de julho de 2019
Um obtuário afetivo para Paulo Henrique Amorim

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Existem textos que ecoam por muito tempo na nossa memória, e não só a literatura tem esse privilégio. Algumas reportagens, críticas e perfis jornalísticos marcaram minha vida e moldaram a jornalista que hoje sou. Quando soube da morte de Paulo Henrique Amorim, na última quarta-feira, lembrei-me de um deles. Uma matéria de uma revista semanal, Veja ou Istoé, lá do final da década de 1990, que começava mais ou menos assim: o jornalista Paulo Henrique Amorim passou a tarde sentado em um banco da praça tal, em São Paulo. Não fazia isso há mais de três décadas, quando começou a trabalhar.

O texto descrevia o quão atônito Amorim havia ficado quando fora demitido da TV Globo, em 1996. Recebeu, em seguida, uma proposta da Band, veículo em que ficou até 1999. O relato de da demissão inesperada e a surpresa do personagem fixaram em mim a imagem de um operário do jornalismo. Que havia décadas não tinha uma tarde livre em um dia de semana.

Paulo Henrique começou no jornal A Noite, em 1961. Na época da demissão da Globo, era conhecido pelo trabalho como correspondente internacional. Os ternos e lenços muito bem postos e o ritmo marcado da fala, que chamavam o espectador a prestar atenção à notícia, fizeram-me admirá-lo, mais que seus comentários políticos e econômicos. Era alguém que impunha respeito pelo respeito que tinha à notícia que dava.

Calejado após a demissão da Globo e, posteriormente, da Band, onde conduzia um polêmico programa de entrevistas com políticos, PHA passou a tirar proveito de sua língua ferina. Ancorou um dos primeiros jornais online do país, no UOL, e gostou da liberdade da internet. Depois das passagens pelo Zaz, UOL e IG, onde nasceu o blog Conversa Afiada, o jornalista relançou o blog em espaço próprio em 2008.

Assim como no livro O Quarto Poder - Uma Outra História, em que conta podres da relação da grande imprensa (a Globo, principalmente) com poderosos da política, utilizando a figura de um entrevistado que ele chama senhor Y, Amorim fez fama contando e analisando o que há de pior nas relações de poder, e foi muitas vezes processado por isso. Gilmar Mendes, Daniel Dantas, Ali Kamel e Merval Pereira estão na lista de quem o acionou por injúria, calúnia ou difamação. Heraldo Pereira o processou por injúria racial.

Seu contrato com a Record correu sempre muito bem, desde 2003, e estava abalado, por esse motivo: as críticas que o jornalista fazia ao governo e o apoio da cúpula da TV a Bolsonaro não combinaram. Diz-se que o presidente pediu a demissão dele ao bispado da Record. Quando morreu, Paulo Henrique estava afastado do programa que apresentava, o Domingo Espetacular, havia um mês.

Paulo Henrique cunhou o termo PIG - partido da imprensa golpista - para se referir ao monopólio midiático pouco democrático que domina o país, e frequentemente mudava os nomes dos personagens que analisava para não ser alvo de novos processos. Em 1998, até Lula foi acusado de comprar um carro e um apartamento por meios ilegais. O petista pediu direito de resposta à Band e a coisa foi desmentida. Não era fácil, portanto, vê-lo nos domingos da Record falando dos gatinhos que pulavam da varanda dos apartamentos da zona Sul carioca.

Eu encarava isso como a faceta recente daquele operário do jornalismo que de dia trabalhava para pagar as contas e nas horas livres fazia o que considerava importante. Os vídeos do Conversa Afiada, em que dialogava com personagens tão interessantes quanto pouco valorizados pela grande imprensa eram de um sabor inigualável para fãs de jornalismo de qualidade. Ele achou maravilhosa a peça potiguar Jacy, e entrevistou o diretor Henrique Fontes com um misto de curiosidade e admiração muito nítidos.

Paulo Henrique Amorim fará uma imensa falta, e ao contrário do que pensam os que não concordavam com ele, não só para os leitores à esquerda. Seu rigor com a qualidade do texto e da apresentação, relatados por muitos que com ele trabalharam, fazem muita falta num tempo em que as redações estão apinhadas de estagiários e trabalhadores trocados como roupas depois do inverno. Um tempo que não tem tempo para a qualidade.

O compromisso de PHA com a crítica, aquela que nos leva para a frente, aquela que víamos também em Ricardo Boechat, está virando item de museu nas redações. Esse compromisso é, neste momento da vida pública brasileira, a única coisa que pode salvar o jornalismo. Somente duvidando, investigando, perguntando, perguntando de novo, e reportando, pode-se expor tudo o que se quer esconder e destruir. Somente criticando podemos municiar a combalida opinião pública a tomar decisões próprias. Somente sendo detestados pelos poderosos seremos jornalistas de verdade. Devemos ser sementes de suas ideias, Paulo Henrique Amorim. Muito obrigada

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