Um presidente entre o fastio e o apetite
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Um presidente entre o fastio e o apetite

7 de abril de 2019
Um presidente entre o fastio e o apetite

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O presidente Jair Bolsonaro tem demonstrado sofrer de um enorme fastio quando se trata de fazer política, de jogar o jogo democrático, de tratar do cotidiano cinzento da administração, de realizar as articulações e negociações necessárias para que se tenha governabilidade. Desde a campanha eleitoral, que Jair demonstrou que era melhor já irmos nos acostumando com um presidente que terceiriza as decisões político-administrativas, que atribui aos auxiliares a tarefa de definir programas e prioridades, que espera que eles realizem a articulação com o Congresso Nacional, para que as medidas administrativas e de gestão possam ser aprovadas e implementadas. Bolsonaro nunca tentou enganar ninguém, se muitos se deixaram ou quiseram se enganar, ele, desde que era um parlamentar obscuro e ausente das decisões mais importantes para o país, sempre demonstrou inapetência quando se trata de exercitar a arte da política, até porque lhe falta dotes indispensáveis para isso, como disposição para o diálogo e o debate de ideias (até porque tem poucas), o espírito democrático, ou seja, a abertura para o convívio e aceitação do diferente, do pensamento divergente e diverso, o domínio da palavra e da retórica, indispensável para o convencimento do outro, desde a Antiguidade, o se deleitar com a dialética das posições políticas. Desde que era parlamentar, Bolsonaro demonstrou certo cansaço em relação aos debates públicos (se ausentado ou se dedicando a seu esporte preferido que é navegar pelas redes sociais enquanto os debates se desenrolavam). Quando, essa semana, em dois ataques de sincericídio, disse ser um abacaxi ser presidente da República e confessou que não nasceu para o cargo que ocupa, mas para ser militar, ele apenas explicitou o que vemos todos os dias, desde que, para surpresa dele mesmo, sentou na cadeira da presidência do país.

Essa última revelação é muito significativa e, ao mesmo tempo, muito preocupante. Quando Bolsonaro afirma que não nasceu para ser presidente, numa semana em que teve que passar um dia atendendo líderes partidários, em que foi pressionado a deixar as redes sociais e suas viagens internacionais para bajular líderes direitistas, homenagear ditadores e se dedicar às tarefas comezinhas da vida pública, da atividade política e de gestão de um país da complexidade do Brasil, mais uma vez ele demonstra essa falta de apetite quando se trata do exercício de um cargo público dentro de um Estado democrático, que pressupõe a existência do contraditório, da oposição, do conflito, de pressões de distintos grupos e classes, de divergências e alianças. Sua eleição tendo sido viabilizada no lastro de uma campanha sistemática de criminalização da atividade política, com o apoio dos meios de comunicação em parceria com parcela do Judiciário. E tornou-se um obstáculo ao próprio exercício da política e, por corolário, da democracia. O que mais preocupa é que, ter nascido para ser militar, segundo Bolsonaro, significa ter nascido para dar ordens e não para negociar, ter nascido para bradar palavras de ordem e não para apresentar argumentos num debate plural de ideias, significa seu apetite pelo poder sem peias e sem contestação, seu apetite pela autoridade sem limites e conseguida mediante ao uso da força e não mediante o uso da racionalidade e do exemplo construtivo. Sua obsessão pelas armas é muito revelador: não se negocia ou se debate ideias com um revolver na mão, não se coloca disponível para ouvir e aceitar o contraditório quem porta uma metralhadora para dizimar adversários. A racionalidade de caserna ou até miliciana do presidente revela sua pouca disposição para as atitudes que uma vida em democracia exige. A principal delas: respeitar o adversário e não ver nele um inimigo a ser abatido e derrotado, nem que para isso tenha que se usar a violência direta. A arte da política foi inventada pelos homens para tentar evitar a violência sanguinária, a política é a arte de mediar e resolver conflitos, de fazer as desavenças humanas serem canalizadas para atitudes e ações de evitação do confronto direto, pessoal, corporal, sanguinolento.

Não nascer para ser presidente, na cabeça de Bolsonaro, parece ser ter nascido para ser um ditador (já que elogia e admira a todos), não ter nascido para ser um presidente num Estado democrático, o que exige o exercício cansativo da política. Bolsonaro teria enorme apetite pela presidência se ele pudesse “mudar isso aí”, só com seu desejo, com sua palavra, com uma canetada sua (a retirada da fiscalização eletrônica das estradas sem nenhuma discussão, sem nenhum estudo e análise prévia de impactos, sem ouvir especialistas, dá a ideia da forma que Bolsonaro imagina a atividade de um presidente. Ele não para de falar nesse gesto irresponsável como se fosse um modelo de governança e de gestão. Eu quero, eu posso, eu faço, é a lógica autoritária). Ele abomina a velha política, a velhíssima política democrática, que vem lá dos gregos, porque ela impõe a quem dela participa, a contenção de seus desejos de poder, a temperança no uso da força e da violência, a moderação nas atitudes e costumes, o respeito pelo outro que dele diverge. A chamada revolução conservadora pretendida por Bolsonaro, que se realiza via a mobilização direta da turba pelas redes sociais, desconhecendo a mediação das instituições constituídas e constitucionais, é uma proposta autoritária, a medida que se apoia na ideia de que a vontade dessa maioria constituída pela mobilização digital deve se impor sem limites e sem contestação sobre toda a sociedade. Com o auxílio luxuoso de centenas de perfis falsos nas redes, de robôs e disparadores automáticos de mensagens, aquela opinião, aquele desejo, aquele achismo, que chegar ao trend topics no Twitter deve prevalecer sobre o jogo democrático dos discursos e debates parlamentares, sobre os debates e discussões promovidas pelas instituições da sociedade civil, consideradas, a priori, suspeitas de patrocinar ideologias exóticas, de disseminar o marxismo cultural, a ideologia de gênero ou coisas semelhantes. Bolsonaro confessa que sonha com um país no formato de um quartel, em que uns mandam e outros obedecem sem contestar (o que levando em conta seu passado na caserna parece irônico ou uma piada de mal gosto).

A ideia de militarizar a administração pública, de militarizar a educação, de espalhar a lógica da caserna para todo o Estado, é coerente com um presidente que sente fastio em relação a atividade política e sente fome de poder e de autoridade discricionária. É preciso que se ressalte que Bolsonaro reproduz e é produto de uma cultura autoritária formadora de nossas instituições militares, simbolizada e resumida pela ideia de disciplina. Ideia moderna por excelência, como bem demonstrou o filósofo Michel Foucault, a disciplina visa produzir corpos e subjetividades dóceis, obedientes, servis, adaptadas à reprodução da ordem política e econômica. A formação disciplinar abomina tudo que possa parecer desordem ou anormalidade. A disciplina é a internalização e a incorporação das demandas do poder de governo, é a preparação do corpo e da subjetividade para se deixar melhor governar. Por mais contraditório que possa parecer, Bolsonaro faz um péssimo governo porque deseja governar muito mais do que uma democracia o permite. Ele se enfastia porque não pode simplesmente queimar os livros didáticos que expõem a verdade de que o golpe de 1964 foi um golpe, porque ele não pode, talvez com a ajuda luxuosa de Carluxo, Damares, Perez e Olavo de Carvalho, redigir a prova do Enem de seus sonhos. Se ele é tão fissurado em redes sociais é porque nelas seus desejos e opiniões podem se realizar e se disseminar sem contestação imediata. Nelas ele pode emitir as opiniões e as teses mais estapafúrdias e nenhum chato o pode contestar imediatamente, e quem o fizer, a posteriori ele pode simplesmente excluí-lo ou bloqueá-lo. As redes sociais são um ambiente perfeito para seu desejo narcisista de poder sem peia, de fala sem adversário. Todas as vezes que intervinha no Parlamento, o fazia aos gritos, tentando com o tom da voz impor sua visão muito particular das coisas, quando não fazia gestos como estirar a língua para seus contendores (qualquer semelhança com o comportamento de Paulo Guedes diante da contestação e das provocações da oposição não será mera coincidência). Bolsonaro tem verdadeiro pavor que lhe contestem as afirmações porque, diante de uma argumentação contrária, ele é colocado na situação de ter que contra-argumentar e como fazê-lo se lhe falta recursos e treinamento para isso? Bolsonaro é um corpo treinado e disciplinado e uma cabeça desarrumada e desordenada. Quando é chamado a contradizer um contendor quase sempre parte para a agressão, a bravata, o deboche, por falta de recursos intelectuais e culturais. Ele fica visivelmente desconfortável diante de microfones e repórteres, ele teme ser questionado pois nunca foi muito bem preparado para discutir questões, para o debate de ideias, ele foi preparado para decidir uma questão a bala, daí dizer ter nascido para ser militar. Suas performances diante de microfones no exterior tem sido de corar até a mais pura das freiras, constrangimento e vergonha alheia é o que nos resta sentir.

Num momento em que as instituições que deveriam defender a democracia têm se mostrado covardes e pusilânimes, tendo muitas delas participado com entusiasmo do estupro das nossas instituições e da Constituição, inclusive o Supremo Tribunal Federal, que se deixa acuar por falas de generais, editorias da imprensa e pela opinião nas redes sociais, ter um presidente com pouco apetite para o jogo democrático é perigoso e assustador. Bolsonaro se viabilizou como alternativa política porque as instituições que deveriam defender a democracia e o Estado democrático de direito, com suas regras, códigos e liturgias, resolveram caminhar pela senda da excepcionalidade para retirar do poder um partido e forças políticas que não conseguiram retirar democraticamente pelo voto. A operação Lava Jato, que tinha desde o princípio o objetivo de prender a maior liderança popular do país, de afastá-lo da vida pública, cometeu inúmeras e escandalosas ilegalidades, ferindo a letra da lei e da Constituição, com o aplauso da grande mídia e de setores expressivos da sociedade brasileira, que se mostrou mais uma vez despreparada para a vida democrática e eivada de autoritarismo. O que se reivindicava é o mesmo que reivindica o presidente inapetente para o jogo democrático: o apressamento de procedimentos e a desobediência a salvaguardas e direitos. A Lava Jato, como o próprio nome diz, prometia lavar com rapidez a corrupção do país, e para isso não abriu mão de violar as leis, de cometer atos arbitrários e sem amparo constitucional, tudo sob o beneplácito das outras instâncias da Justiça, que se omitiu, se calou ou referendou atos da maior discricionaridade. Sérgio Moro está ao lado de Bolsonaro, e com ele rivaliza como futuro candidato a presidente, por partilhar com ele o pouco apreço pela democracia e seus jogos e rituais. Moro, assim como Bolsonaro, não nasceu para ser juiz, na acepção própria da palavra, nasceu para ser justiceiro. Ele não quer obedecer e aplicar as leis, ele quer as moldar a seus desejos e caprichos. Ele as aplica seletivamente dependendo de seus interesses políticos e de sua visão ideológica. No fundo ele sonha com uma Constituição que ele possa chamar de sua e com leis que ele possa obedecer ou desobedecer dependendo das circunstâncias e da pessoa que é objeto de seu julgamento. O que se viu nos processos envolvendo o presidente Lula é algo que nenhum Estado democrático de direito que queira fazer jus a esse nome pode permitir: um juiz que se torna acusador, um conluio entre todas as instâncias da polícia e da Justiça, a violação sistemática de direitos, a inversão do ônus da prova, o fim da presunção de inocência, o aligeiramento de todas as etapas do processo, a discricionariedade nos procedimentos, o uso de expediente criminosos como a indução a delação premiada, a tentativa de criminalização da defesa, o linchamento prévio e público do acusado com o uso sistemático dos meios de comunicação, a inobservância dos direitos mais comezinhos como de visitar um parente morto. Moro teve o que Bolsonaro deseja ardentemente, uma Constituição só para ele, um código penal e um código de processo penal redigido por ele à revelia do Congresso e das demais instâncias da Justiça. Nas poucas vezes que teve que ir ao Congresso, Moro demonstrou que é irmão siamês ou conge de Bolsonaro, na falta de inteligência e no despreparo, mas também no autoritarismo e na arrogância, na incompreensão do jogo democrático, ao dizer que os parlamentares não poderiam mudar ou emendar seu pacote de medidas e ao querer ele definir o ritmo e o modo de tramitação de seu projeto autoritário e inconstitucional.

Como vemos, Bolsonaro também se cercou de gente que não sabe o que é viver e agir politicamente numa democracia. O ministro da Economia, Paulo Guedes, demonstrou em sua ida ao Congresso o quanto é inábil e despreparado para o debate político e também demonstrou vontade de ir para casa se o Congresso resolver roubar o seu pirulito: uma reforma da previdência que na verdade é a destruição da seguridade social do país, uma reforma que contribuirá para o aumento da miséria e da desigualdade, vendida como uma panaceia para todos os problemas e embalada na falácia do corte de privilégios, quando só favorecerá os já privilegiados. Assim como Bolsonaro, seus ministros estrelas agem como criança emburradas sempre que seus desejos de onipotência são questionados pelos fatos e pelas relações numa sociedade democrática, por isso mesmo, complexa, contraditória e conflitiva. Bolsonaro sonha, como todo projeto de ditador, com o paz dos cemitérios, com o silêncio do cale-se. Para ele tudo que cheira à luta democrática por direitos é comunismo e deve ser destruído, toda luta por benefícios sociais é marxismo cultural, toda reivindicação é vista como impertinência, estorvo e desafio. Ele, e os três projetos de tiranos que pôs no mundo e educou (ou deseducou), não estão preparados para o debate democrático (um deles se ausenta sistematicamente da Câmara de Vereadores no Rio de Janeiro, onde deveria participar dos debates parlamentares, para decidir se ministros ficam ou saem através do Twitter, o deputado e o senador ainda não disseram para o que vieram no Congresso, mesmo sendo filhos do presidente não têm se colocado como possíveis lideranças de uma articulação política para apoiar o governo do pai, nem mesmo têm participado com destaque na defesa de seu governo e de seus projetos (talvez porque inexistam), tendo deixado os ministros estrelas do governo do pai nas mãos da oposição).

Portanto, as forças que defendem a democracia, que se colocam ao lado do jogo democrático, devem prestar atenção a essas falas e gestos de sinceridade de Bolsonaro. Ele não gosta da política democrática, ele não se alimenta da dialética das ideias e das ações (ele deve achar que dialética é coisa de comunista). Ele quer mesmo é o faço e arrebento, ele quer mesmo é a imposição sem peias de suas ideias e desejos. Ele sonha que ao dizer “é preciso mudar isso aí” a mudança se faça sem demandar o debate e os esforços de construção de uma hegemonia, de uma legitimidade, de um certo consenso em torno dessa mudança. Bolsonaro olha com desprezo o Congresso e os congressistas, até porque guarda um enorme ressentimento por ter sido um parlamentar marginalizado e periférico durante décadas, escanteado na hora da repartição das benesses que essa atividade proporciona, mas porque também acha o debate parlamentar uma perda de tempo, um jogo sujo e mesquinho, uma relação que o pode levar a jogar dominó na cadeia. Sua fome e sede de poder desabrido e sem peias torna enfadonho e incômodo a necessidade da negociação e do toma lá da cá da política parlamentar. Bolsonaro, amparado em décadas de campanha de desmoralização da vida política e parlamentar, pode querer perpetrar uma aventura autoritária, um golpe contra as instituições, realizando sua vocação de nascimento para ser um militar e não um presidente da república democraticamente eleito (a tradição golpista das Forças Armadas do Brasil inaugurou a República entre nós e desde lá nunca desapareceu. A ameaça do General Vilas Boas ao Supremo em caso de reconhecimento de que é inconstitucional a prisão em segunda instância é um exemplo claro de que as Forças Armadas no Brasil nunca se submetem ao poder civil e nunca reconhecem a Constituição como instância limitadora e definidora de sua atuação). Bolsonaro prefere a guerra à política, sua campanha e sua vida pública foram presididas pela lógica da guerra e não pela lógica da política democrática. Nas redes sociais, Bolsonaro e seus asseclas, independente de quem está na frente, atrás ou no meio, se perfilam por uma atuação agressiva e guerrilheira, por fazer guerra de destruição e linchamento de seus adversários (podendo chegar a morte e ao abate), comemorando a morte de quem não partilha de suas posições, ameaçando a integridade física de quem lhe faz oposição, aplaudindo o exílio e a inabilitação de seus concorrentes, considerando um grande dia aquele em que um de seus adversários saiu do ou perdeu um combate. É a lógica da guerra em ação e não a lógica da política. Para vencer a guerra se lança mão de todas as armas, de todos os estratagemas, de todas as estratégias, como: a mentira, a calunia, a difamação, a intimidação, a perseguição, armas consideradas impróprias e eticamente reprováveis na vida democrática. Na lógica da guerra os demais poderes, que limitam e contrabalançam o poder do Executivo, são vistos como óbices, como obstáculos a transpor ou como amolações a se desconhecer; a imprensa e seu poder de controle deve ser estigmatizada e repelida (só o meio de comunicação dócil e disposto a fazer a propaganda favorável a guerra em andamento interessa: a guerra em defesa dos valores conservadores, da família, dele inclusive). Portanto, fiquemos alerta, pois, para quem nasceu com vocação para fazer a guerra e não para fazer a política, todo tipo de violência às instituições parece possível e desejável. O desejo de morte que acompanha quem “nasceu para ser militar” é um perigo para a política, que representa o desejo de vida, de fazer melhorar e proliferar a vida, através de seu governo. Um governante que incentiva o uso da violência, que elogia ditadores e torturadores, que com eles se identifica, é um candidato a ditador e torturador, portanto, temos que ter muito cuidado com esse presidente que confessa ser um abacaxi o posto que ocupa, que se diz inapto para ele. Ser inapto para ser presidente, não significa ser inapto para ser um tirano, ao contrário, a história nos ensina que os presidentes passaram a existir com o fim das tiranias. Temos que estar a postos na defesa da democracia, ameaçada vivamente por quem não está preparado subjetivamente para exercê-la. O fastio político e o apetite pelo poder do presidente pode resultar num país empanzinado de autoritarismo e de violência.

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