Uma câmera-Jaguar Kichwa contra o colonialismo
Natal, RN 26 de abr 2024

Uma câmera-Jaguar Kichwa contra o colonialismo

10 de outubro de 2021
Uma câmera-Jaguar Kichwa contra o colonialismo

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Por Marcos Aurélio Felipe

I.

O cinema indígena de Abya Yala (expressão Kuna que designa o continente americano) já ocupa espaços importantes nas instituições dos estados nacionais latino-americanos. Desde os anos 1980, na América do Sul, tem produzido significativo acervo audiovisual sobre a história, a cultura e as questões contemporâneas dos povos originários, vinculando-se, principalmente, ao movimento indígena como artefato de reivindicação dos direitos territoriais e divulgação cultural. Os filmes da ONG Vídeo nas Aldeias (VNA), coordenada por Vincent Carelli, inserem-se nesse contexto, com larga produção audiovisual sobre o mundo histórico originário e realização sistemática de oficinas de formação audiovisual de cineastas e coletivos indígenas de cinema.

De objeto da academia (livros, teses e artigos) a mostras e festivais, as produções também tem sido realizadas por jovens egressos das “escolas de cinema”, organizadas como talleres express [1] com foco na dimensão prática de filmagem e edição – como o Wayuulab 2021, promovido pela Anakaa Films e Red de Comunicaciones del Pueblo Wayuu, Colômbia. Recentemente, sob execução do Museo Chileno de Arte Precolombino, da Muestra Cine+Video Indígena e do Centro de Estudios Interculturales e Indígenas (CIIR), a Escuela Diversa de Cine Indígena tem permitido a troca de experiências de jovens de ascendência originária com pesquisadores acadêmicos, especialistas e estudiosos no tema e, sobretudo, com realizadores Mapuche, Quéchua, Rapanui e de outras etnias de Abya Yala – com filmografias e trabalhos reconhecidos.

Em uma dessas aulas abertas da Escuela Diversa de Cine Indígena, que se realizou em 8 de setembro deste ano, quando as estratégias com as tecnologias possibilitaram que a dimensão remota substituísse a presencialidade, o cineasta Kichwa de Sarayaku Eriberto Gualinga fez a exposição da sua trajetória, debateu e comentou com os estudantes o seu documentário de maior impacto sobre as questões fundamentais da sua comunidade cujo território está situado no Equador.

O documentário Los descendientes del jaguar (2012), notadamente, um filme vinculado ao cinema indígena político e não culturalista, aponta sua câmera contra modelos da história impostos pela sociedade nacional equatoriana. Dela, saem imagens da invasão e da ocupação militarizada do território Sarayaku, em 2002, com as forças armadas subsidiando a instalação de uma empresa de petróleo protegida pelo Governo do Equador sem consulta prévia as comunidades. As imagens de arquivo que, inicialmente, estruturam o documentário, inserem-nos e denunciam a situação imposta, com registros de um helicóptero aterrissando sobre a margem do rio Bobonaza, funcionários da petroleira Companhia Geral de Combustíveis S.A. (CGC) se instalando no local e, na sequência, grupos do exército equatoriano ocupando o território Sarayaku, localizado na província de Pastaza, a partir de quatro bases militares instaladas na região: Jatún Molino, Shaimi, Pacayaku e Pozo Landa Yaku. Impressionante como a pragmática fílmica de Eriberto Gualinga retoma, em 2012, os arquivos audiovisuais feitos uma década atrás, não mais os registros dos acervos etnográficos, mas os que ele mesmo produziu quando confrontou o colonialismo com sua câmera-jaguar em mais um episódio da história colonial que se abateu sobre os territórios originários de Abya Yala.

Primer desembarco de Cristóbal Colón en América (1862, óleo sobre tela - 3,30X5,45) / / Dióscoro Teófilo Puebla y Tolín ©Museo del Prado
A invasão portuguesa (1999 – acrílica sobre eucatex - 1,60x1,45) | Pedro Pereira ©FUNCARTE

II

Desde a invasão de Abya Yala, em 1492, pelas esquadras de Cristóvão Colombo (com fé, espada e a subjugação do Outro), o colonialismo é processo largamente (re)construído pelas imagens. A despeito da ritualização e destino manifesto entrevistos, tornando o ato um evento sagrado e quase etéreo, as iconografias oficiais, no entanto, deixam escapar, como escreveria o antropólogo João Pacheco de Oliveira (2016), a natureza hierarquizada da cena da ocupação, o papel e lugar secundários no quais situam os povos indígenas diante dos fatos e, nas bordas do quadro, sua integração quase vegetal a paisagem – como se percebe na pintura de Dióscoro Teófilo sobre o desembarque de Colombo na América. Abordagem diametralmente oposta propôs o artista plástico potiguar Pedro Pereira, que, por ocasião dos 400 anos da cidade do Natal (RN), mostrou que a História de "Nova Amsterdam" não tinha apenas 4(quatro) séculos. Ao intitular sua obra "A invasão portuguesa", além de dar nome ao fato e deixar claro que, se houve invasão, havia um espaço já habitado, desenvolveu plasticamente uma releitura e problematização do “Descobrimento”, dos sistemas de verdade e esquecimento naturalizados. Para além do título, a intervenção na pintura, com aquele monstro encravado sobre uma superfície de acrílica sobre eucatex, provoca, necessariamente, uma intervenção na paisagem seminal, edênica, bucólica, solar – que tinha tudo para ser idílica, à moda dos painéis dos pintores viajantes dos séculos XVI-XVIII, se o horror do domínio sobre o território e seus habitantes não estivesse em perspectiva. Com garfos e arames, pinos e barrote de ferro fundido, corporificando Pedro Álvares Cabral, a sobreposição de outros materiais sobre a matéria pictórica do quadro/paisagem destrói qualquer natureza pacífica que se queira atribuir a colonização. Tratando o evento como invasão, em seu título, temática e materialidade, Pedro Pereira atrela, assim, uma abordagem à contrapelo e radical da arte às abordagens revisionistas da história do colonialismo – político e pictórico.

III

Mas, com o cinema contracolonial de Eriberto Gualinga, os registros deflagram e confrontam o embate entre a comunidade e o exército do Equador, com a intensidade da truculência do contato (sempre e de outra forma) com a sociedade nacional, inscrevendo-se na superfície do quadro, permanentemente, em crise e se desenvolvendo na instabilidade das situações que acompanha com a câmera no ombro e o olho atento no visor. O quadro, consequentemente, é instável, o mundo, que nos chega em ebulição, parece insustentável, pois, ao sair de trás da câmera para o campo das imagens, a chegada do invasor não é mais observada passivamente, desde as bordas. Mas confrontada diretamente com o registro documentário, invariavelmente, irredutível em seu propósito: apesar de tudo, no compasso da urgência e sob o risco do real – com o cinema apoiando o processo Kichwa Sarayaku de contestação daquele estado de coisas seis vezes secular. Como se já não bastasse o registro feito desde a perspectiva interna, por um dos seus membros, a voz e o corpo do cineasta Kichwa de Sarayaku Eriberto Gualinga irrompem no campo da imagem, saem assim do lugar de conforto onde, em geral, os documentarista se escondem para interrogar o mundo. A presença do cineasta no campo fílmico, que também é histórico, talvez seja para que não tenhamos dúvida que cinema e história se confundem no âmbito das cinematografias indígenas. Ao confrontar a barbárie, que se renova, com menor ou maior intensidade, ameaçando o registro em processo de feitura, a câmera de Gualinga se vê ameaçada por um soldado do exército que, em vão, exige que o realizador Kichwa pare de filmar. Ordem que logo, em um ato de resistência, é recusada, com o realizador informando ao agente militar que não interromperá a gravação, que é (à época) estudante de comunicação e continuará fazendo o registro.

Essas imagens de arquivo (2002-2003), em Los descendientes del jaguar, dialogam estruturalmente com os registros da viagem, realizada uma década depois, pela representação da Associação do Povo Kichwa de Sarayaku (Tayjasaruta) à capital Quito, Equador, e à Corte Interamericana de Direitos Humanos de São José da Costa Rica – que, diante do Caso no 12.465, promoveu audiência pública em 6 e 7 de julho de 2011.

Frames de Los descendientes del jaguar | 2012 © Pueblo originário Kichwa de Sarayaku y Amnistía Internacional

IV

Esses materiais de base – de arquivo e contemporâneos – entram, permanentemente, em retroalimentação, com o realizador Eriberto Gualinga conduzindo o que vemos, o que passamos a saber e o que aconteceu, a partir da opção pela opacidade que o insere no campo das imagens, com sua câmera sempre a espreita a filmar os passos do seu povo e com o seu notebook montando o filme em tela. Os arquivos de imagens de 2002 impulsionam a segunda parte do documentário e, de forma orgânica, interligam o antes e o depois, uma vez que os segmentos subsequentes, que se passam em Quito e, depois, na Costa Rica, tem sua motivação nos registros que Gualinga fez da ocupação militarizada do território Sarayaku. Principalmente, impulsionam a história, os acontecimentos e a agência indígena a procura dos seus direitos ancestrais. Constitui-se, assim, no marco de um cinema processo, não apenas pelo período prolongado da produção que se estendeu por dez anos, mas por aderir ao contexto dos filmes “marcados pela história”, pois, como lembra a pesquisadora Clarisse Alvarenga (2017, p. 77), nesse “gênero”, “a marca que a história deixa nos filmes convive, de certa forma, com a marca que os filmes deixam na história”. Nesse caso específico, uma década de acontecimentos atravessa essas imagens, que absorvem o processo histórico e nele atua, interfere, modifica.

Como narrador off, sujeito fora e dentro da imagem, inserindo para depois desconstruir, o cinema Kichwa de Eriberto Gualinga faz, curiosamente, um recorte inicial que aproxima Los descendientes del jaguar dos tradicionais filmes etnográficos. A abertura do documentário é basicamente uma cartografia das formas e modos do seu povo se relacionar entre si, dos seus costumes e da sua base cultural, dos saberes e, sobretudo, das formas como mantem contato com a natureza. São planos de apresentação comunitária, com crianças Kichwa brincando no rio, as mães pintando os seus corpos e as práticas da caça em processo de registro. Mas logo, com a consciência histórica em suas lentes, o realizador Eriberto Gualinga desarticula esse estado de coisas, apenas aparentemente edênico, idealizado, primal, quebrando o espelho da pastoral de salvamento [2] induzida e, imediatamente, recusada. Na relação com o conjunto do filme, essa abertura é um exercício intertextual pungente com a tradição do cinema antropológico porque, na sequência, desarticula um quadro que, facilmente, seria pintado pelos viajantes e exploradores seiscentistas. Nesse sentido, se para o filme etnográfico de fatura pastoral o mundo dos povos originários é peça museológica, no regime contracolonial de Gualinga, a situação de colonialidade não é um “campo sembrado de rosas” (Columbres, 2004). Diante do espelho estilhaçado, as imagens de arquivos comprovam a colonialidade do poder, sendo que, aqui, já não se trata mais de tencionar os arquivos fílmicos do mundo (repatriar, comentar e revisá-los) (Cordova, 2011), mas, como já assinalamos, mobilizar seus próprios acervos em defesa do território.

V

Nesse campo, com seus próprios documentos da história, onde o cinema indígena inscrevem em blocos de imagens suas memórias ancestrais e seu patrimônio cultural, não por acaso parte das provas documentais apresentada a Corte Interamericana da Costa Rica incluíram fotografias e vídeos de fatura Kichwa Sarayaku, que apoiaram os depoimentos e atestaram que a empresa petrolífera exploradora mantinha uma segurança privada (Jaraseg) e uma segurança pública (com os soldados e oficiais do Exército equatoriano). Impressionante ainda, em Los descendientes del jaguar, são os encontros e desencontros na sequência do aeroporto, com os membros da representação Sarayaku em um embate simbólico com os agentes da sociedade nacional. Esse momento é capturado pela câmera de Eriberto Gualinga que expõe a fricção entre a máquina das burocracias da modernidade e as tradições originárias, ou seja, em torno da natureza sagrada ou bélica do bastão que o líder Kichwa de Sarayaku tem em mãos. Entre equívocos e recusas, de parte a parte, em torno dos artefatos sagrados de Sarayaku, em questão, estão os procedimentos do aeroporto em torno da segurança e da necessidade de despachar a parte esse instrumento, supostamente, perigoso. Nesse momento, à espreita, captando o jogo de olhares, a câmera de Eriberto Gualinga registra o desencontro entre dois mundos, os parâmetros ocidentais de segurança e a cosmovisão dos povos originários, que, na perspectiva das lideranças, constitui para o povo Sarayaku um “conjunto de significados: [a partir do qual se compreende que] a selva é viva e os elementos da natureza têm espíritos (Supay) que se conectam entre si e cuja presença sacraliza os lugares”.

* Marco Aurélio Felipe é professor do Centro de Educação UFRN e autor de "Ensaios sobre cinema indígena no Brasil”.

** Texto publicado originalmente no Le Monde Diplomatique Brasil

NOTAS:

[1] O termo talleres express, que designa as oficinas executas nas comunidades indígenas, é termo utilizado por Amália Cordova para se referir a natureza das atividades de formação audiovisual nos territórios originários.

[2] Pastoral de salvamento é termo utilizado por Catherine Russell nos estudos do filme etnográfico que, a partir de texto clássico de James Clifford “On ethnographic authority” (1983), analisa certas abordagens que situam sempre os povos tradicionais em um passado remoto destituídos de contemporaneidade.

REFERÊNCIAS

Alvarenga, Clarisse. Da cena do contato ao inacabamento da história. Salvador: Edufba, 2017.

Colombres, Adolfo (Org.). Cine, antropología y colonialismo. Buenos Aires: Ediciones del Sol/Clacso, 1985.

Cordova, Amália. Estéticas enraizadas: aproximaciones ao video indígena al América Latina. Comunicación y médios, Santiago, n. 4, p. 81-107. 2011.

Pacheco De Oliveira, João. O nascimento do Brasil e outros ensaios. Rio de Janeiro: Contra Capa, 2016.

Russell, Catherine. Otra mirada. Archivos de la filmoteca: revista de estudios históricos sobre la imagen, Valencia/Espanha, n. 57-58, 1, p. 116-152, 2007.

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