Uma ditadura pra chamar de sua
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Uma ditadura pra chamar de sua

22 de junho de 2020
Uma ditadura pra chamar de sua

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Quando eu era mais novo, no tempo do secundário, muita gente tentou, sem sucesso, me convencer a ler Marx, Engels e Lênin. Meus colegas militantes da Convergência Socialista, do Correio dos Trabalhadores, da TPOR (Tendência Por Um Partido Operário Revolucionário), de várias maneiras buscavam argumentos que me fizessem abandonar meu dandismo pequeno burguês por uma boa dose de realismo proletário. Vindo de uma família de militantes ligados ao PCB, acabei preferindo, até como uma forma de demarcar minha autodeterminação geracional, mergulhar nos textos de Jack Kerouack; nas poesias de Ginsberg, de Rimbaud e de Blake; na densidade existencial das páginas de “O Conceito de Angústia” de Kierkegaard ou de “O Mito de Sísifo” de Albert Camus; e nunca fui além de uma leitura despretensiosa e bem-humorada do “Manifesto Comunista em Quadrinhos”.

Foi justamente depois dos 35, cansado de tanto ser chamado de “comunista” e “esquerdista” nas redes sociais por perfis vinculados a Olavo de Carvalho e seus mais diversos espécimes de apóstolos, que comecei a ler Marx, Lênin e sua turma. Confesso que fiquei meio em crise. Será que eu era mesmo um comunista safado e não sabia? Logo eu, que ouvia Joy Division e Velvet Underground enquanto a turma da militância ainda se deliciava com Geraldo Vandré, Chico Buarque e Vital Farias? Logo eu, que andava de preto por aí, recitando poesias etílicas cheias de misticismo pós-punk em bares vagabundos ou em vagões de trem abandonados? Logo eu, que me achava tão liberal com essa tolerância a crenças religiosas diversas, a variedade sexual, a diversidade de pensamento, ao direito de cada um viver do jeito que quiser sem ninguém pra encher o saco? Seria isso tudo: “coisa de comunista”?

Estimulado pelos juízos críticos de parte da fauna reacionária virtual que se multiplicava nas selvas brasílicas, resolvi começar a ler os textos que meus colegas de militância do tempo da ETFRN tentavam, sem sucesso, me convencer a ler e uma das coisas interessantes que descobri nessa aventura de reconhecimento político foi que, muitas vezes, foram justamente os mais reacionários, aqueles que mais contribuíram para a divulgação das ideias de Marx e Engels.

Quando Marx publicou “A Guerra Civil na França” em 1872, a Europa estava entrando em um período de grande violência e repressão política contra todas as forças de esquerda. O acontecimento da Comuna de Paris, em 1871, havia assustado a burguesia Europeia, que acabou saudando jubilosamente os mais de 20 mil fuzilamentos proporcionados pelo exército prussiano nas ruas da capital francesa.

No esteio da paranoia antissocialista que se seguiu, os lideres do SPD (Partido Social Democrata) alemão, Wilhelm Liebkrecht, August Bebel e Adolf Hepner, foram julgados por traição. A imprensa deu ampla cobertura ao caso, e a promotoria leu durante o julgamento trechos do Manifesto Comunista de Marx e Engels como parte do corpo probatório contra os acusados.

A imprensa reacionária imediatamente identificou Marx, que teria acabado de publicar o que seria “uma defesa eloquente da barbárie socialista ocorrida durante a Comuna de Paris”; como um “perigoso líder de uma conspiração comunista internacional que estaria prestes e tomar conta da Europa”, o velho judeu alemão, exilado em Londres seria: o grande “Doutor oculto do terror vermelho”.

O problema é que Marx, enquanto Paris estava cercada pelos prussianos (no mais longo cerco da história das guerras modernas até a batalha de Stalingrado), já havia decidido trocar as barricadas revolucionárias pelas estantes da biblioteca fazia algum tempo. Naquela época, o autor de “O Capital” passava seus dias debruçado na cadeira estofada de couro azul da escrivaninha G7 da biblioteca do Museu Britânico de Londres, agindo como “uma máquina de devorar livros e depois atirá-los, em uma versão alterada, no monte de esterco da história” - como havia confessado um dia a sua filha, diante da frustração de ver suas ideias pouco compreendidas por seus contemporâneos.

Mesmo assim, quando a notícia de que o povo de Paris não iria aceitar o armistício assinado pelo governo Francês com o governo da Prússia, convocando uma eleição e instalando uma nova República; Marx encontrou um motivo para interromper seus estudos sobre economia e se dedicar a analisar os desdobramentos da Comuna.

Pela primeira vez a bandeira vermelha da internacional havia sido desfraldada no lugar da bandeira tricolor da república francesa, trazendo os auspícios de que uma nova revolução, feita para corrigir e completar a revolução de 1789, estava em curso.

Os deputados eleitos (1/3 de artesãos e quase 30% fazendo parte da Segunda Internacional) cuidavam diretamente, tanto dos aspectos legislativos quanto da execução da administração pública de Paris durante o período do cerco. Os funcionários públicos, além de receberem os mesmos salários que em média recebiam qualquer um dos trabalhadores manuais da cidade, podiam ser diretamente demitidos e substituídos pelas assembleias populares que exerciam de modo direto sua interferência na administração.

Marx entendeu então que o regime de cerco e a urgência de organizar as defesas contra a invasão prussiana iminente estabeleciam a necessidade da construção de um modelo híbrido de governo. Uma espécie de “autogestão imanente do princípio da ditadura”. É nesse contexto que ele vai formular uma de suas ideias menos aprofundada e mais distorcida, a noção de: “ditadura do proletariado”.

Em sintonia com o conceito clássico de “dictator” que remontava a presença de Cincinato no governo de Roma durante o cerco gaulês à cidade (por volta do século V a.c.), Marx entendia que a adoção de medidas democráticas de participação popular que estimulavam a soberania do povo sobre a administração pública, casavam perfeitamente com a violência contra a classe burguesa, que em seu movimento de recuo contrarrevolucionário, havia se coadunado junto ao inimigo alemão contra o seu próprio povo. Neste sentido, a ideia de “ditadura”, em Marx, não pode ser simplesmente reduzida a uma descrição de um regime político, mas sim a uma nomenclatura para designar o domínio de uma classe sobre outra.

A categoria “ditadura do proletariado” não se mantém deste modo em oposição à categoria “democracia liberal burguesa”, mas a algo identificado como “ditadura do Capital”, que antes de ser um regime político, era uma disposição de domínio de classe.

Você deve imaginar o frio na espinha que esse tipo de ideia produzia pelos salões da fina flor da burguesia europeia.

Por mais estranho que possa parecer a identificação do “inimigo comunista” com artistas pelados que fazem performances em museus (SIC), é preciso admitir que o pânico que a direita reacionária deixa transparecer diante da palavra “comunismo” faz sentido no Brasil atual.

Em um país onde seis sujeitos tem o equivalente a renda de 100 milhões de brasileiros e onde uma minoria ínfima da população controla mais de 90% do patrimônio do país formando uma das concentrações de renda mais brutais da história do capitalismo, não é surpresa alguma que uma elite dominante neurasténica, pronta a se agarrar a qualquer discurso de autoridade para se proteger da imensa maioria de cidadãos que vivem dos restos de um banquete econômico para o qual nunca são convidados, surte periodicamente procurando sinais de revolução em qualquer lugar (inclusive - podem rir agora - em museus de arte contemporânea ou na novela das oito!!).

O cômico é que na busca constante de uma ditadura para chamar de sua e se proteger da “ditadura do inimigo”, essa mesma elite brasílica acaba repetindo como um recorrente sintoma psiquiátrico, a velha histeria da burguesia europeia do século XIX, que vibrou com os fuzilamentos, os julgamentos sumários, perseguições, execuções e prisões políticas que se espalharam pelo continente como reação ao pânico que as palavras “ditadura do proletariado” passaram a causar após o colapso da Comuna de Paris.

Foi nessa toada que a máquina reacionária começou a transformar a figura de Marx em uma referência para a esquerda socialista europeia, fazendo seu obscuro Manifesto, escrito quase 25 anos antes, ganhar o mundo.

A construção do inimigo comunista é uma das estratégias que justificam a adoção de regimes de força. A lógica é simples: para lutar contra a ditadura que me ameaça, eu mantenho a ditadura que me protege.

O preço pago pela direita por ressuscitar o “inimigo comunista” é justamente o de chamar atenção para as ideias e a história desse movimento, que minha geração acreditou realmente já estar sepultado, mas que de repetente foi retirado do museu de novidades arqueológicas pelas mesmas mãos que pareciam tê-lo enterrado quase trinta anos atrás.

Pra mim, isso parece claríssimo, afinal, como escreveu Nietzsche (um cara que dificilmente alguém minimamente letrado poderia acusar de comunista): “(...)sempre foi assim, e assim sempre será; não se pode ser mais útil a uma causa do que perseguindo-a e excitando toda a matilha contra ela (...)”.

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