Uma história simples
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Uma história simples

3 de agosto de 2018
Uma história simples

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Em janeiro de 2011, Leila Guerriero resolveu, dois anos depois de ter lido um artigo publicado no La Nación sobre o assunto, ir até uma pequena cidade da província de Córdoba, na Argentina, assistir ao festival mais tradicional - e secreto - do sapateado dos gaúchos argentinos, o malambo. O relato dessa viagem e da participação dos personagens nela envolvidos está em Uma História Simples, livro da jornalista publicado em 2015 no Brasil.

Leila revela, na narrativa, uma habilidade descritiva notável. De repente, o leitor se dá conta de que está em um povoado pacato de seis mil habitantes, com sua igreja, sua praça principal, sua prefeitura, suas casas com jardim na frente, suas Toyota Hilux 4x4… E vive por ali por uma semana, com olhos nervosos e coração pululante diante do sapateado que, ao mesmo tempo que consagra, acaba com a carreira de seus bailarinos. Isso porque, explica ela logo no início, um campeão do Festival de Laborde está, por um acordo tácito, proibido para sempre de competir em outros festivais.

Foi provavelmente Abusado, do brasileiro Caco Barcellos, que me fez ver os livros reportagem quase que como espécies do gênero roteiro. Eles têm a capacidade de transportar o leitor a universos que não estão no radar dos veículos de comunicação, apesar de não serem fictícios. Em Uma História Simples, a preservação da tradição do gaúcho, o respeito aos campeões e aos companheiros de competição e a persistência em perseguir um título em Laborde são contados com um fervor que, provavelmente, só uma argentina poderia incorporar.

Até aí, o livro poderia ser visto apenas como um relato antropológico. Chega, às vezes, a ser excessivamente minucioso. A descrição dos figurinos, das expressões dos bailarinos e até da meca em que Laborde se transforma naquela semana são importantes para a compreensão do culto em torno do festival. Mas eis que, a partir de determinado ponto, a narrativa do livro afunila para os relatos das vidas dos concorrentes ao prêmio máximo, o malambo maior.

A escolha de Leila é acertada. Ao acompanhar com persistência, em particular, um dos personagens, mesmo quando ele está fora do festival, ela demonstra não só respeito por essas histórias de gente comum - os concorrentes são quase sempre filhos de famílias numerosas, que mal têm dinheiro para comer e que andam até três horas para chegar à escola -, como também um perfil da Argentina sufocada por anos de governos inábeis e crises econômicas aterradoras.

Além disso, ao optar por inserir-se na história - expondo ao leitor o dilema vivido ao dar-se conta de que poderia estar interferindo no desempenho dos concorrentes -, a autora permite ao leitor perceber a reportagem como trabalho a ser exercido com obstinação: quase sempre, é necessário incomodar, invadir, devassar para conseguir uma boa apuração (algo parecido, aliás, aconteceu a Caco Barcellos, no mesmo Abusado).

O resultado, no entanto, é apaixonante. Além de escapar do relato cotidiano e transgredir o texto tradicional, com construções estilísticas típicas da literatura, Leila encontra uma maneira particularmente honrosa de descrever vidas marcadas não pela pobreza extrema, mas por  aquela que impõe a busca pela sobrevivência e que acaba com anseios intelectuais ou artísticos.

- Eles têm 21, 22 e 23 anos. Aspiram a ter no palco, mas também debaixo, os atributos que se supõem atributos gaúchos - austeridade, coragem, altivez, sinceridade, franqueza - e ser rudes e fortes para enfrentar os golpes. Que sempre são, como já foram, muitos.

São personagens que poderiam ser encontrados no Brasil, por sua luta e persistência cotidianas em sobreviver em um país tão negligente com os sonhos. Mas que são argentinos. Que vibram com uma dança executada em trajes típicos, em não mais que cinco minutos, com a velocidade de um corredor de 100 metros rasos e que, se consagrada, leva ao fim a carreira de seus bailarinos. Sobreviventes e devotos de uma dança, uma simples dança.

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