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17 de dezembro de 2019
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Adoro viajar para a cidade grande. Todos os anos tento ficar uns dias em alguma delas para fazer coisas que não conseguimos fazer aqui em Natal. Ver filmes legais no cinema, visitar museus, conhecer galerias de arte, entrar em livrarias e folhear livros antes de comprá-los, andar dignamente na calçada, no transporte público, assistir telejornais com notícias locais, ir ao teatro…

Ai, contei isso a um amigo que mora na cidade grande e ele retrucou:

- Mas vocês têm ótimos grupos de teatro em Natal. Disso, você não pode reclamar…

E ele está certo. Certíssimo.

Esse fim de semana, experimentei uma agenda de fim de semana de dar inveja a qualquer cidade grande. Comecei com um sambinha patrimônio na quinta-feira, nas ruas do Beco da Lama, onde voltaria no sábado para o carnaval “fora de época” da Cidade Alta – como se houvesse época para o carnaval.

Mas nada disso me impressionou. Os pontos altos do fim de semana estavam nos teatros.

Na sexta-feira, fui A Casa da Ribeira. Era a estreia do grupo Teatro das Cabras, um grupo formado exclusivamente por mulheres que apresentaram “A tragédia mais insignificante do mundo”, um espetáculo surpreendente pela densidade do texto, pela profundidade dos atos que nos obrigava a submergir para refletir sobre o que não vemos na superfície. Um espetáculo que traz o olhar das mulheres às coisas do mundo e faz desmoronar todo e qualquer olhar machista para aquela cena do crime.

A trilha sonora perturbadora – e executada ao vivo pela beatmaker BEX – nos transportava para dentro dos conflitos na cabeça da perita criminal que buscava desvendar o assassinato de três cabras. A violência contra aquelas cabras não era muito diferente das que sofrem as mulheres todos os dias. A insignificância daquela tragédia não é muito diferente da percepção que a sociedade ainda tem de crimes de feminicídio, de agressões físicas e psicológicas contra esposas, filhas, mães, mulheres trans. Quase não aguentei a pressão até o final, mas decidi resistir, assim como precisam resistir às mulheres que não podem fugir dos seus conflitos como se foge do teatro.

No domingo, foi a vez de sair do centro e encontrar o teatro na Zona Sul. Sim, nem só de sol, mar e botecos para turistas vive a zona Sul. No coração do bairro de Neópolis, no conjunto Pirangi, está o Tecesol, um espaço autogestionado idealizado pelo grupo Facetas, Mutretas e Outras Histórias e que agora é também compartilhada por outros grupos de teatro da cidade, como o Estação, o Estandarte, o Clowns e o Carmim.

Só que aqui não tem palco, não tem poltrona, não tem cortina. O espetáculo começa antes mesmo que você perceba. E antes que você perceba, você será marcado, maquiado sutilmente, abraçado, beijado. E de repente começa “O bizarro sonho de Steven”. É como lembrar de um sonho, você quase nunca sabe bem como começou.

Dessa vez, não foi estreia. A montagem faz parte das comemorações dos 20 anos do grupo Facetas, que revisitou todos os textos da sua trajetória ao longo de 2019. E talvez por isso, o espetáculo estivesse tão preciso, tão intenso e tão surpreendente. Tudo ali era sonho, às vezes pesadelo, às vezes o subconsciente escapando pelas brechas da racionalidade, às vezes a loucura escapando da sanidade.

As luzes, os sons, os corpos se fundiam para materializar sentimentos oníricos – como é que pode um artista virar sonho ou pesadelo assim na sua frente? E de repente provocar arrepios na espinha pela violência, pela perturbação, pelo medo de estar preso naquela mente doentia de Steven. Ou de ter medo de estar preso dentro da nossa própria mente, tão surrada nesses tempos de 2019.

E tem muito mais teatro esse fim de ano. Na semana que vem, tem o Festiva de Artes Cênicas da Casa da Ribeira e os ingressos já estão à venda e podem acabar logo. Já comecei até a chamar meus amigos da cidade grande para vir também.

Neste fim de ano, para não perder o juízo, não vá ao shopping. Vá ao teatro.

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