Velhos espectros, novos pavores
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Velhos espectros, novos pavores

14 de abril de 2020
Velhos espectros, novos pavores

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Um espectro ronda o Brasil – o espectro do comunismo.

Essa paráfrase da primeira frase do Manifesto Comunista de Marx e Engels, publicado pela primeira vez em 1848, parece embaraçosamente atual. Ao menos, no imaginário dos milhares de apoiadores de Jair Bolsonaro, que se espalham pelo Brasil.

Para mim, que passei os primeiros vinte e seis anos de minha vida no século XX, quinze deles em um mundo bipolar, cindido entre um bloco capitalista e um bloco comunista; parece o sintoma de algum distúrbio psiquiátrico essa nomenclatura anticomunista que emerge do discurso dos neointegralistas da taba de tupi.

É até desconcertante ver um garoto que mal fez vinte anos e que nunca viu na vida um “comunista raiz”, começar a repetir de modo pouco articulado uma série de lugares comuns sobre esquerdismo, leninismo e outros ismos do mundo analógico, como se tivesse acionado algum comando cerebral que põe a linguagem pra “rodar na banguela”. Para mim, que ainda tive a oportunidade de conversar com alguns dos velhos militantes que participaram de 35, foram presos nos cárceres do Estado Novo ou lutaram no Araguaia, soa realmente sem sentido essa ansiedade fóbica das novas gerações conservadoras diante de uma suposta ameaça vermelha.

Nunca estivemos tão à direita no espectro ideológico. Em um mundo que classifica um programa como o do Siryza grego, do Podemos espanhol ou do PSOL brasileiro, como de “Extrema esquerda”, faz sentido que o sumo pontífice da Igreja Católica seja considerado uma das maiores lideranças progressistas do planeta.

Mas, vamos ser um pouco condescendentes com os “bolsomínios”. Talvez seja um bom exercício especulativo fazer um pequeno esforço hipotético e se perguntar: e se eles tiverem razão?

E se o espectro do comunismo estiver mesmo rondando o planeta? Se a hipótese utópica que moveu as revoluções vermelhas no século XX estiver firme entre nós, esperando a brecha ideológica, a crise institucional, o vacilo dos donos do poder, o crack do sistema, para dar um bote definitivo e derrubar o capitalismo?

Para começar a conversa é bom lembrar que o comunismo não foi uma invenção de Karl Marx nem de Friedrich Engels.

Quando o jovem Marx abandonou a Alemanha e se mudou para a França em 1843, após o governo prussiano mandar fechar o jornal para qual ele escrevia, o movimento operário já ensaiava mais uma tentativa de reeditar o ambiente revolucionário de 1789 a partir de uma nova perspectiva.

O Manifesto Comunista, que nasceu no calor dos acontecimentos de 1848, não havia sido pensado como uma ferramenta para a criação do movimento comunista, mas para a divulgação da “boa nova” que o movimento anunciava.

O encontro entre Marx e Engels em 1843, na França, marca assim, não um momento originário de criação a partir do nada, mas uma confluência de perspectivas que iria redimensionar um movimento que já existia.

Reza a lenda que, no primeiro encontro, os autores do Manifesto passaram 48 horas sem se desgrudar, conversando intensamente sobre a “miserável imundice da vida industrial”.

Enquanto Marx era um apátrida, fugindo das perseguições políticas, Engels tinha uma vida dupla. Trabalhava na empresa do pai e conhecia bem a organização do capitalismo do século XIX a partir de “dentro”. Ao se envolver com Mary Burns, uma operária irlandesa que o levou para ver de perto a miséria dos bairros operários de Manchester, Engels acabou por empreender sua travessia ideológica. Marx, por sua vez, expulso de Paris em 1845 por influência do serviço de inteligência ligado ao governo prussiano, acabou articulando-se em Bruxelas com a rede Federalista dos Comunistas e passou a teorizar sobre as estruturas econômicas que nos condicionam e que afetam a vida social.

A base para a feitura do Manifesto foi, deste modo, um texto anterior do próprio Engels intitulado “Os Princípios do Comunismo”, feito por encomenda para a Liga dos Justos, em um modelo de “catecismo” com perguntas e respostas.

O contato com Marx modificou profundamente o texto. Redigido como uma espécie de elogio fúnebre, o Manifesto começa como uma peça laudatória do grande potencial revolucionário do capitalismo e da classe burguesa. “As façanhas da burguesia” – escreveram Marx e Engels – “(...) superam as pirâmides do Egito, os aquedutos romanos, e as catedrais góticas”. Como um Fausto alucinado pela descoberta do próprio poder de transformação, a burguesia que emergiu como classe dominante das revoluções dos séculos XVII e XVIII, havia libertado as forças produtivas da humanidade de seu cárcere feudal, e liberado a história para construir um mundo futuro.

Em um processo de destruição criativa constante, tal qual Mefistófeles, o diabo particular de Fausto na obra de Goethe, a burguesia transformou a face da terra, anunciando em uma visão epifânica um futuro marcado pela exuberância da tecnologia e pela intensidade avassaladora da produção e da riqueza.

Mas o elogio de Marx e Engels traz um humor mórbido. Sua elegia irônica é a homenagem póstuma que o assassino faz diante do cadáver de sua vítima.

“A burguesia faz seus próprios coveiros” e esses coveiros, unidos na liga comunista, diante da euforia iminente dos acontecimentos revolucionários de 1848, estavam anunciando o novo mundo, por meio das palavras de seus profetas (Marx e Engels).

O problema é que a revolução que o Manifesto anunciava como iminente, não aconteceu. Leon Trotsky, muito tempo depois, avaliou que o momento em que o texto do Manifesto veio ao mundo era um tempo de interregno. A burguesia não queria mais a revolução, já estava satisfeita com o que tinha conquistado. O proletariado, por sua vez, ainda não tinha condições de levar adiante um projeto revolucionário.

Neste sentido, o Manifesto Comunista é uma antecipação impaciente, que tanto subestima a capacidade da burguesia do século XIX em se manter no poder, quando superestima a capacidade dos trabalhadores de se organizar para cumprir sua suposta “tarefa histórica”.

Como qualquer obra literária, o Manifesto Comunista tem algo de ficção.

Antes de ser um documento que avalia a conjuntura da Europa em 1848, é uma projeção utópica de um futuro que ainda não estava posto. Ele é muito mais um anúncio espectral de uma possibilidade projetada no tempo, do que um diagnóstico de um momento.

Por isso a frase inicial do texto enuncia algo de muito profundo sobre o modo de ser próprio, tanto do comunismo quanto do capitalismo. Algo que pode explicar o delírio antecipatório dos “bolsomínimos” e de seus correlatos mundo afora.

O comunismo é a fantasia mais perigosa do capitalismo.

Como duplos complementares, comunismo e capitalismo estão ligados em um nexo de efetividade e potencialidade, de realidade e fantasia. O comunismo é “o outro” do capitalismo, o espectro para tudo aquilo que não é sociedade de mercado. Por isso, em sua ausência absoluta, o comunismo é sempre uma presença ameaçadora.

Como na ansiedade de morte ou nas fantasias dos suicidas que imaginam o próprio velório, o capitalismo realmente existente projeta como fantasia ideológica um comunismo póstumo, que surge após o enterro do cadáver da sociedade de mercado.

Por isso, faz todo sentido que o apelo da hipótese comunista assuste mais justo no momento em que o capitalismo e todas as suas variantes tornou-se senhor da terra.

É justamente no vazio deixado pela queda do comunismo realmente existente que o comunismo enquanto ideia, enquanto projeção de uma fantasia de alteridade, aparece como uma possibilidade emancipatória e não como um sintoma de fracasso.

Sempre é bom lembrar que o Manifesto Comunista caiu rapidamente no esquecimento após a derrota de 1848. O retrocesso que seguiu ao desmonte da esquerda europeia nos anos que se seguiram a publicação do Manifesto, pareciam tê-lo condenado a um papel periférico na construção do movimento operário. Apenas durante a década de 1870, quando uma nova vaga revolucionária nasce na França e o Partido Social Democrata alemão é fundado, é que as edições do Manifesto começam a se multiplicar. Entre 1880 e 1900 surgiram 18 edições da obra em alemão e 31 em russo. Após a morte de Marx (1883) e Engels (1895) o texto ganhou uma dimensão e uma expansão que teria assustado os autores. Foram 75 edições diferentes em 15 idiomas.

Talvez por isso, neste tempo em que se revisita o centenário da revolução de Outubro (1917) e o bicentenário do nascimento de Marx (1818), os conservadores tenham lá seus motivos para tremer diante do velho espectro comunista, mesmo que, para gente como eu, que costuma pensar o presente com o pessimismo da razão, isso soe tão absurdo.

De tanto a direita gritar contra a ameaça comunista, talvez, em um curto espaço de tempo, esse espectro pouco nítido, gaseificado por uma fantasmagoria inconsciente, criação de um capitalismo que há muito perdeu o controle sobre si mesmo, possa se materializar de algum modo no horizonte do possível.

Fico imaginando se os críticos de Bolsonaro (me incluo neste grupo) ao invés de tentar diagnosticar o tipo de transtorno psicótico que supostamente afeta seus seguidores, começassem a acreditar mesmo na presença desse espectro contra o qual os “bolsomínios” procuram se embater e acabassem por seguir o conselho dos autores do Manifesto Comunista que escreveram a quase duzentos anos: “é tempo de os comunistas exporem, abertamente, ao mundo inteiro, seu modo de ver, seus objetivos e suas tendências, opondo um manifesto do próprio partido à lenda do espectro do comunismo”.

Já pensou o que aconteceria?

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